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Biografia

cachoeira dourada, mg/go, 1955. vive e trabalha em são paulo.

Ao longo dos seus quarenta anos de carreira, Shirley Paes Leme vem explorando diferentes suportes, como instalação, vídeo, desenho, escultura e gravura, privilegiando o uso de matérias naturais. Investida dessa diversidade criativa, a artista direciona o olhar para elementos prosaicos do cotidiano, por vezes quase imperceptíveis, como fumaça, fuligem, poeira, teia de aranha, o ar e resquícios da memória, emaranhando presente e passado ao transitar entre as reminiscências da infância no sertão de Minas Gerais/Goiás e as sutilezas perceptivas da vida na cidade grande. A literatura é também matéria fundamental na produção da artista, seja por seu potencial expressivo, seja pela transposição da palavra à matéria, transformada em frases que serpenteiam suas composições ou, até mesmo, em densa presença na parede, fundida em bronze, alumínio ou resina, remetendo a uma dimensão temporal singular.

Shirley Paes Leme iniciou sua formação artística em 1975, no curso de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais, onde foi aluna de Amilcar de Castro. Na década de 1980, estudou na University of Arizona, no San Francisco Art Institute, na University of California e na John F. Kennedy University, onde obteve o título de doutora em 1986. Foi bolsista da Fundação Fullbright de 1983 a 1986. Em 1999, participou do programa Artista em Residência no Kunstlerhaus Bethanien, em Berlim.

Participou de mostras no Museu de Arte de Brasília (1989); Bienal de Lausanne (1993); Bienal da Polônia (1995); Bienal do Mercosul (1999); Bienal de La Habana (Cuba, 2000); Mostra do Redescobrimento: Brasil +500; Musée d’Art Contemporain de Bordeaux (França, 2001). Seu trabalho está presente em importantes coleções no Brasil e no exterior, como Museu de Arte Moderna de São Paulo; Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo; Museu Nacional em Aalborg (Dinamarca); Pinacoteca de São Paulo; Instituto Cultural Itaú; Inhotim; Museu de Arte de Brasília; Museu de Arte Contemporânea do Ceará, entre outras.

 

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Exposições

Textos

A semântica, os significados e as simbologias das palavras são constantemente usados na produção da artista Shirley Paes Leme. São forças que norteiam ideias, agrupam pensamentos e, algumas vezes, constroem conceitualmente os trabalhos, como nas instalações “Lá vou eu em meu eu oval” e “Cultura”. As palavras ganham nas obras presença matérica.

 

A definição de rarear é tornar-se raro, menos denso, menos frequente. Rarear é a palavra que a artista usa para nomear sua exposição na Galeria Raquel Arnaud. No entanto, como nome da exposição, a palavra ganha uma letra maiúscula, que destaca a presença da palavra “Ar” na composição de “rarear”.

 

Se uma das questões centrais na produção de Paes Leme é a matéria, seja em sua transitoriedade ou nas marcas que certas ações sobre ela podem produzir, vale lembrar que o próprio “vazio” do espaço, o ar, é ele mesmo matéria. Em um de seus escritos, Leonardo da Vinci teceu ideias sobre a relação entre o vazio e as coisas que ocupam o mundo. Segundo da Vinci, o ar “está cheio de infinitas linhas retas e radiantes, entrecruzadas e tecidas sem que uma ocupe jamais o curso de outra, e representam para cada objeto a verdadeira forma da sua razão (da sua explicação).

 

Em “Resíduos da cidade”, iniciado na década de 1980 e desenvolvido pela artista até hoje, Shirley remove filtros de ar condicionado de carros para realizar desenhos e composições. Esses filtros de feltro sanfonado chegam para a artista tingidos de diversos tons de cinza, resultado da fumaça filtrada na passagem do ar. Junta-se à questão das palavras a matéria em si. Os desenhos da artista se constroem com matéria.

 

Nesses desenhos do que foi capturado no ar da cidade, os filtros se abrem carregando as marcas das dobras originais ou se articulam pelas dobras em composições. Carregam uma geometria que ora se planifica, ora se lança suavemente para fora do plano. Com um removedor, parte desses filtros são trabalhados em um desenho feito pela remoção da matéria negra. São desenhos sem marcas precisas, constroem-se em manchas de degradê, entre peso e leveza. Eles explicitam o peso do ar, registram a cidade e são eles mesmos a própria cidade impregnada.

 

Já em “São Paulo à noite: Poema Concreto”, de 2014, três estantes repletas de livros de diversos assuntos estão pintadas de negro. As únicas informações que se fazem ver são poucas palavras nas lombadas dos livros, cuidadosamente eleitas pela artista. O que se constrói é um skyline, uma massa constante e similar que, como imagem icônica, lembra o desenho do horizonte das grandes cidades. Assim como nós habitamos as cidades, no trabalho as palavras habitam o skyline, e se nossas histórias também constituem a identidade da cidade, aqui a cidade também se faz de histórias, das mais diversas possíveis, cheias de singularidades, como as cidades. 

 

Talvez certa estaticidade banhe a exposição como um todo. Mas ela está presente justamente para apontar para a cidade em sua solidez matérica, presentificando também seus fluxos imateriais e o próprio ar que respiramos neste exato momento.

 

Douglas de Freitas

Agosto de 2019

A escuridão, a densidade, o acúmulo da matéria, o espaço comprimido. Não está fácil respirar, não está fácil, não está. O corpo peleja, os pulmões escurecem. O papel branco se torna preto de tanta fuligem, poluição, fumaça, poeira e fagulha. Pelas chaminés dos polos industriais, pelos escapamentos automobilísticos, pelos cigarros que queimam nas mesas de bar, pelas queimadas florestais, até mesmo pelos fogões a lenha. O pó habita. Em outro momento, picumã. Para sempre, picumã. Na sala de espera do hospital, a única circulação de ar se dá pelo ar-condicionado. A janela fechada, a luz branca, o vento frio, o tempo que passa estendido e sem vontade. A cada sopro, um pouco menos de vida. O ranger do ar que entra e sai é estrondoso, por mais que silencioso aos ouvidos. Qual o som do ar? O tempo passa, ao passo que revela cores e formas antes invisíveis. Qual a cor do ar? A pele, o papel, o pulmão e a paisagem se transformam, ganham marcas, dobras e escurecem. O espaço vazio, o espaço cheio de ar. Abertura para o infinito. Instaladas no teto, as formas geométricas do ar-condicionado proporcionam escapes visuais. O dentro é o fora, o fora é o dentro. Quantos triângulos cabem em um quadrado? A geometria flexível de Amilcar de Castro guarda uma memória afetiva. Corte e dobra, gestos familiares que se estendem pela História da Arte. Concretismo e casas com fogão a lenha compartilham o mesmo espaço/tempo, atravessam pensamentos e materializam ideias. A geometria sensível constrói paisagens de uma cidade sem horizonte, com edificações que dão formas às cordilheiras de concreto. Prédios são erguidos lado a lado, paredes que elevam outras paredes. Horizonte onde? O céu não tem margem. Palavras são anotadas em pedacinhos de papel, folhas soltas e cadernos que se perdem dentro da bolsa. Um buraco negro que se carrega debaixo do braço. Shirley Paes Leme é seu próprio ateliê, sua própria terra. Ela é a cultura de si mesma. A terra em mim não é a mesma terra em você. Minha terra, sua terra. A terra parece ser leve, mas é densa. Caminhar, trabalhar, amar, pensar, desenhar, palavrear, desejar, cultivar, parar, falar. Às vezes as palavras saem roucas, quando não derretidas. Suspiro em vão. Filtros de ar-condicionado de automóveis e máscaras cirúrgicas precisam ser trocados de tempos em tempos. Trabalhos de arte são cultivados na sala de espera do hospital, dentro do carro, em uma casinha de pau a pique ou onde quer que chegue o ar. A arte torna visível aquilo que olhamos sem perceber. Artistas sabem que a estranheza faz parte de uma percepção atenta. Insetos que nascem nas fezes de boi germinam ideais: cultura. O germe da vida. Se ela está no campo, vira pedra; se está no mar, vira água; se está na cidade, vira prédio. Viver desconcerta. O corpo é arejado, porém o ar de São Paulo é sufocante. Na cidade esfumaçada, os tons acinzentados do ar proporcionam um pôr do sol rosa neon. O antagonismo entre a vida no campo e a vida na metrópole é pulsante. Uma vez disseram que o campo não precisa de arte, porque lá se tem natureza. Onde nasce a cultura? Saberes oriundos de histórias vividas na infância caminham junto àqueles que são aprendidos na universidade. O tempo antes do tempo. No início, a trama do papel era trançada em meio aos galhos e cipós das árvores. O ar poluído da cidade ou a fumaça negra do fogão a lenha são vestígios de um tempo que pode ser aprendido pelo papel. O papel que desenha ao invés de ser desenhado, a pintura que pinta ao invés de ser pintada. O ar em contato com a pele do papel. Epiderme, celulose, fotossíntese. Respiração. O pulmão de ouro inala o ar da cidade. Onde folhas são de dinheiro, mico-leão-dourado só existe enquanto imagem de vinte reais. Arara-vermelha, onça-pintada, tartaruga-de-pente e lobo-guará são alguns dos animais também em extinção. A Amazônia arde em chamas, mas só é notada quando o céu da capital paulistana escurece às 15 horas na segunda-feira, 19 de agosto de 2019. O ar é denso. Retomar o ar, suspirar o luto. Uma nuvem de fumaça proveniente de queimadas originadas a milhares de quilômetros de distância. Existe um abismo entre o Sudeste e o Norte do Brasil, entre a sua terra e a minha terra. O ar uma miragem. Gases atmosféricos condensam a dor que vem de dentro da Terra para dentro dos corpos. A gravidade sobre os corpos animados ou inanimados é a mesma. A dor e o ódio não podem seguir a nos governar. Alguma coisa está fora da ordem, por mais que tudo esteja aparentemente no mesmo lugar. Qual é o lugar da ordem? O peito estufado expande as costelas, enquanto o peito esvaziado as retrai. O movimento é o mesmo, repetitivamente, desde o momento em que se nasce até o instante em que se morre. O instante é a respiração.

 

*as palavras e frases em negrito são de autoria da artista e utilizadas em uma das séries de trabalho

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