Obras disponíveis
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Biografia
rio de janeiro_ rj_ 1957_ vive e trabalha no rio de janeiro
A desenhista, pintora e gravadora
Elizabeth Jobim realizou suas primeiras exposições na década de 1980, buscando uma compreensão atualizada da pintura e uma interpretação sensorial e subjetiva do mundo e dos objetos. Nos anos 1990, a artista retoma o gênero da natureza-morta ao tomar como ponto de partida a observação de pequenas pedras. Nos anos 2000, Elizabeth Jobim expande e intensifica os diálogos entre a pintura e o espaço que a circunda por meio da criação de grandes instalações pictóricas com partes moduladas, cuja simplicidade sofisticada apropria-se dos espaços vazios entre as partes para acentuar não somente as cores, mas a relação entre a obra, a arquitetura e o espectador. Seu trabalho, em contínuo processo de desprendimento da parede, ocupação do espaço e criação de vazios, adquire um caráter híbrido entre a pintura, a escultura e a instalação.
Elizabeth Jobim formou-se em Comunicação Visual e especializou-se em História da Arte e da Arquitetura no Brasil pela PUC-RJ. Fez mestrado na School of Visual Arts (Nova York). Estudou desenho e pintura com Anna Bella Geiger, Aluísio Carvão e Eduardo Sued no MAM do Rio de Janeiro. Em 1994, lecionou na Escola de Artes Visuais do Parque Lage.
Destacam-se as mostras individuais: “Endless Lines” (Nova York, 2008); “Em Azul” (SP, 2010); “Blocos” (RJ, 2013); “Variações” (RJ, 2019); entre outras. Entre as suas exposições coletivas, destacam-se: “Como Vai Você Geração 80?” (RJ, 1984); “Panorama da Arte Atual Brasileira” (SP, 1990); “MFA Fine Arts: Selections from the special projects” (Nova York, 1992); 5ª Bienal do Mercosul (2005); “Mulheres na Coleção MAR” (2018); entre outras. Seu trabalho faz parte de importantes coleções, como as do MAM do Rio de Janeiro, MAM de São Paulo, Museu de Arte do Rio, Pinacoteca de São Paulo e Bronx Museum of the Arts.
Exposições
elizabeth jobim_horizontais
22 mar_2007 - 20 mai_2007
elizabeth jobim_pinturas
11 mar_2005 - 20 apr_2005
elizabeth jobim_
20 nov_2001 - 20 dez_2001
Textos
Para o menino maranhense Ferreira Gullar, cada objeto continha, debaixo dele, o seu nome. Um pedaço de rocha teria, gravado na terra, o seu significante, “pedra”. Sob o tronco, estaria escrito o vocábulo “árvore” e, no fundo do curso d’água, “rio”. Adulto e carioca, o poeta, a propósito desse hábito da infância, compôs o poema-objeto no qual um pequeno cubo azul, uma vez levantado da base branca, revelava a palavra “lembra”.No “poema enterrado” — um site specific antes de eles terem tal nome — ao cabo da descida de um lance de escada, encontravam-se cubos que, embutidos num maior, retirados, revelavam a palavra “Rejuvenesça”. Uma impossibilidade…
A mostra de Beth Jobim evoca os gestos poéticos de lembrar e rejuvenescer. E aproxima, noutro patamar, questões adormecidas entre arquitetura e arte.
Lembre que as pedras foram objetos primeiros de seus desenhos e quadros. E que, no percurso, as laterais pintadas das telas ressaltavam suas materialidades enquanto objetos. Mais adiante, a economia de cor, azul ultramar ou terra sangue, aplicada com rolo sobre o branco, mais que delimitar figuras, possibilitava o espaço vazio. Noutro desdobramento, drippings e transparências adicionaram drama a suas composições.
A trajetória de sua produção nos últimos dois anos envolveu experiências com mistura de cores no cimento (Museu do Açude, Casa Roberto Marinho, Paço Imperial, Raquel Arnaud). E o pigmento, antes contido na pele das duas dimensões, agora multiplicado em vários tons, penetrou na essência dos trabalhos. O caminho é circular, pois não custa lembrar que a origem do cimento são pedras que, pulverizadas e calcinadas, voltam a existir, plásticas e moldáveis, quando se adiciona água e, uma vez secas, retornam ao estado sólido. Beth explicita a homenagem ao “Cubo Cor”, de Aluísio Carvão, a ele acrescentando novas escalas, pesos e questões.
Ao adotar um material essencialmente arquitetônico, o desdobramento natural dos trabalhos da artista carioca foi o de estabelecer uma relação com o espaço e a materialidade construtiva. Mário Pedrosa observava que, no México modernista, a pintura mural tomou de assalto a arquitetura, enquanto, no Brasil, a revolução se deu na própria estrutura. Numa empena da Casa Roberto Marinho, aproveitando a mesma misturadeira do concreto do edifício em curso, fôrmas especiais moldaram as obras de Beth Jobim que, chumbadas na fachada, se tornaram elementos indissociáveis da reserva técnica projetada por Glauco Campello. Há muito essa integração não estava explicitada na agenda dos artistas brasileiros.
Nas peças em concreto de Beth Jobim, existe um impulso de fusão construtiva, assim como um desejo de ordenação espacial. A ambiguidade faz parte do jogo: ruínas, vestígios de arquitetura, lápides, sítios arqueológicos ou bases para projeto futuro?
Ao planejar uma exibição, a artista realiza um modelo do espaço para experimentar a disposição das peças. Nessa maquete dispõe o conjunto, a escala de cada um e o diálogo entre os trabalhos; dessa maneira, determina protagonismos, ligações e contrastes.
A exposição na Lurixs reúne vários materiais e técnicas. O pincel reaparece nas telas, assim como indícios dos gestos de pintar e, numa delas, não sem uma dose de humor, é simulada uma superfície mineral cinza.
Na mostra, o sentido táctil do espectador é visualmente ativado para averiguar se a cor é pele ou essência, se o toque é áspero ou liso, quente ou frio. Não se trata de convite à participação manipulativa, mas a um olhar mais demorado. Não se espera que o visitante “desperte” a obra, mas que a ela dedique mais tempo de ver. A visão remete ao tato e retorna ao visual.
Frestas provocam uma intrigante ligação entre questões de deslocamento, caras aos neoconcretistas, numa pintura monocromática, onde o Caput Mortuum poupa linhas da superfície preparada em branco. Noutro a fenda é “pós-fontaniana”. Nela a rebeldia do corte cede lugar a uma abertura voyeurística de uma tela subjacente na cor de vermelho. Autópsia da pintura, acesso para a paisagem de Eros?
Um elemento novo na linguagem de Beth Jobim é a linha costurando a tela e reestabelecendo um ordenamento razoável, ou melhor, realisticamente controlado. No conjunto, que mescla elementos de materiais e espessuras diversas, as peças cinza e a negra tornam ainda mais vibrantes as placas das cores da terra. E apontam uma trajetória que celebra a possibilidade de alegre rejuvenescimento no percurso próprio de sua consistente obra. A alegria ainda é, sempre, a prova dos nove…
Texto da exposição Frestas na Galeria Lurixs, Rio de Janeiro, 2019.
Esta exposição foi concebida como uma provocação conceitual, na qual a artista consentiu em reduzir seu vocabulário a um mínimo – tanto no que diz respeito ao formato, às cores ou aos materiais – articulando-o por meio de variações. Assim, o curador esperava tornar aparente a gramática desse processo.
A propósito, é importante reconhecer o fato de que, ao longo das últimas três décadas, o trabalho de Elizabeth Jobim evoluiu gradualmente do expressionismo abstrato para uma prática construtiva cujo léxico comedido tem algumas coisas em comum com o conceitualismo. De fato, em seu trabalho, já se reconheceram algumas vezes referências ao concretismo da fase inicial ou ao neoconcretismo, ao passo que a sutil manipulação daquela tradição pela artista tem passado despercebida. Com efeito, o trabalho feito por Jobim nesta última década é um desafio consistente às nossas expectativas sobre como a pintura contemporânea interage com o espaço, e sua produção mais recente levou à criação de objetos que desafiam classificações fáceis, embaçando a separação entre pintura e escultura. As implicações espaciais dessa nova abordagem têm sido radicais, à medida que seus trabalhos gradualmente abandonaram as paredes e se espalharam pelo chão, em arranjos reminiscentes de instalações de Barry Le Va.
Luiz Camillo Osorio já havia notado um novo rumo na prática de Jobim em 2013, quando a pintura já se destacava da parede para interagir no espaço de exposição. Osorio observou, com perspicácia, que “a apreensão integral da forma instalada” se dava de modo fragmentado, passo a passo, à medida que o espectador percorria o espaço. Num ensaio de 2018, escrito para a exposição In this place, realizada na galeria Henrique Faria Fine Art, em Nova York, o historiador da arte venezuelano Juan Ledezma identificou no trabalho de Jobim um “conceito visual de disjunção”, trazido à luz, menos por “expedientes técnicos”, do que por ações de corte, recorte e desmembramento. Mais recentemente, Marta Mestre também abordou o “caráter ambiental” do trabalho de Jobim, que ganha “maior relevância” em seu “relacionamento sensorial com o corpo do espectador”.
É verdade que situar o processo de Jobim no contexto de artistas filiados ao concretismo e ao neo-concretismo rende uma argumentação coerente. É igualmente importante, porém, lembrar que para a sua geração, o legado modernista foi comprometido por artistas como Franz Erhard Walther, Franz West e Daniel Buren, cujos trabalhos transitam perigosamente entre arte e artefato. Sua exploração da forma, da cor e do espaço parece convergir com a estética do dia a dia de Jean-Luc Godard, como se pode notar em seu desconcertante uso da cor no filme One Plus One, no qual os Rolling Stones ensaiam Sympathy for the Devil em meio a uma instalação casual de painéis monocromáticos.
Lawrence Weiner deu a um trabalho seminal de 1991 um título que serve também como sua descrição: Bits & Pieces Put Together to Present a Semblance of a Whole (Pedaços reunidos para dar uma ideia de todo). Pintado sobre os tijolos vermelhos da fachada do Walker Art Center, em Minneapolis, o texto de Weiner parece sugerir algum mistério filosófico mais profundo, ou talvez apenas declarar uma obviedade sobre a construção de paredes: pedaços juntados etc. A sagacidade de Weiner ao usar linguagem que se confunde com objetos é uma constante ao longo de sua carreira, como mostra um trabalho anterior intitulado Many Colored Objects Placed Side by Side to Form a Row of Many Colored Objects (Muitos objetos coloridos postos lado a lado para formar uma fileira de muitos objetos coloridos).
Essas reflexões sobre Lawrence Weiner me vieram à mente há alguns meses, quando iniciei um diálogo com Elizabeth Jobim sobre sua nova série de esculturas. Embora o trabalho de Jobim não possa, estritamente, ser considerado conceitual do mesmo modo como consideramos aquele de Weiner, parece-me existir um parentesco entre os processos desses dois artistas, que não se deixa ver em termos de estilo, mas em algo que está profundamente entranhado na linguagem. Ambos os artistas nos pedem, cada um à sua maneira, para pensar em como a arte é construída, e, sobretudo, em como nós, o público, produzimos sentido a partir de arranjos e composições específicos. O contentamento que sentimos diante de obras dessa natureza faz lembrar a reação de Antonio Salieri, ficcionalizada no filme Amadeus (1979), ao ouvir a Gran Partita de Mozart. Realmente, o êxito de elevar a obra de arte da letra à vida, de sua fase conceitual, e fazê-la ressoar no espaço real, sempre nos pareceu um ato de magia. O poder que a arte tem de nos encantar parece estar na capacidade aparentemente infinita da linguagem de recombinar seu pequeno repertório de notas, palavras e formas em novas variações.
Texto da exposição Variações no Paço Imperial, Rio de Janeiro, 2019.
Nos últimos 35 anos o trabalho de Elizabeth Jobim foi acompanhado de várias leituras críticas que aprofundaram o seu léxico singular e observaram persistências e rupturas que merecem ser novamente recolocadas.
Por exemplo, o inicio dos anos 2000 marca uma transição particular, em que a artista deixa para trás a subjetividade festiva da sua geração (o que no seu caso significou o “fim” do longo ciclo de pinturas e desenhos “gestuais”, “impulsivos” e “incertos”), e inicia um novo capítulo relacionado ao “ainda inesgotado impulso moderno brasileiro”.[1] Neste momento, a crítica passa a destacar um denominador comum que ganha estatuto de personagem principal: as pedras! Enigmático pela sua persistência, esse elemento vai aparecer de diversas formas nas suas exposições – desenhos, blocos, monólitos ou esculturas –, e chega até Ensaio, na Galeria Raquel Arnaud, onde a artista aborda uma vez mais este “assunto”. De que falam, afinal, essas persistências no trabalho da artista?
Rodrigo Naves, num texto de 2000 (“As coisas certas”), parece ser o primeiro a assinalar este novo contexto. Fala de pedras como “pontos de partida” para os desenhos que a artista desenvolvia à época, com “arestas marcadas, alguma solidez, um aspecto quebradiço de coisas rígidas”, e lembra os sólidos de Guston e as “esculturas moles” de Oldenburg, numa feliz simbiose que encontra eco na “exterioridade plena” das pedras de Jobim. Um ano depois, Paulo Venâncio Filho reitera o valor filosófico desse objeto tão banal: “Por que essas coisas tão inóspitas, tão sem-assunto, pedras?” (…) “coisa à-toa, para se chutar”, rematava o crítico. Ali, o elemento topológico e escultórico do trabalho de Jobim começava a ganhar corpo (“temos pedras de todas as idades, umas velhas, outras jovens…”), remetendo indiretamente ao “processo de desmaterialização da escultura desde a modernidade”. Paulo Sergio Duarte, por seu turno, num texto para a exposição da artista no CCBB, em 2003 (São Paulo), reitera a mesma ordem de perguntas dos seus pares, e introduz um elemento que passa a emanar tanto das pinturas “opacas e murais” de Jobim quanto da espacialidade que as suas exposições adquiriam. Segundo Duarte, esse elemento é o “vazio”, já que, uma vez “abandonados os códigos (clássicos) da representação e os de sua destruição”, o vazio ganha um estatuto “substantivo”. E é para tornar isso visível que “pedras e rochedos” aparecem no trabalho de Elizabeth Jobim.
Partindo da leitura desses críticos, abreviaríamos a evolução do trabalho de Elizabeth Jobim da seguinte forma: se dos anos 80 até ao início de 2000 os desenhos e as pinturas da artista se descolam do elemento expressivo e ganham um sentido “mineral”, numa espécie de alquimia que transmuta os líquidos em sólidos, de 2000 em diante as pedras vão aparecer literalmente nos volumes escultóricos coloridos que a artista dispõe nas suas exposições, como se de paisagens de “naturezas-mortas” se tratasse[2]. A instalação e o caráter “ambiental” ganham, assim, maior relevância, e isso se reflete na relação sensorial com o corpo do espectador.
Tive oportunidade de acompanhar de perto a criação destes ambientes coloridos e meditativos na belíssima exposição que Elizabeth Jobim realizou no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, em 2013, com a curadoria de Luiz Camillo Osorio. A simbiose que Osorio entreviu em seu texto de apresentação já não foi a de Naves, entre Guston e Oldenburg, mas entre Willys de Castro e Donald Judd, o que acentuou o caráter instalativo que o espaço passava a adquirir no trabalho da artista. Tautologicamente denominada “Blocos” – coisas tão simples quanto “pedras” -, nessa exposição a pintura revestia os volumes isolados no espaço, produzindo uma espécie de “atração cromática” entre os diferentes elementos, “puxando o movimento do corpo nesta ou naquela direção” (Camillo Osorio).
Pedras, blocos, esculturas ou campos magnéticos de reminiscência moderna, o certo é que a persistência desses elementos insólitos no trabalho de Jobim não encontra razões apaziguadoras; e esta exposição, de um trabalho compósito intitulado “Sem título, série Jazida”, reitera, uma vez mais, a pergunta de Paulo Venâncio Filho: “Por que essas coisas tão inóspitas, tão sem-assunto, pedras?”
Índices da nossa capacidade de designar e dispor do mundo, as pedras existem para limitar o vazio e para nos abrigar da absoluta exterioridade. Quando trabalhadas ou delapidadas (como o prisma de Melancholia de Dürer) remetem à reflexão filosófica, mas também podem servir, como em tantas pinturas do Renascimento, como marcadores da perspectiva, mais próximas ou mais afastadas do ponto de fuga. Para os surrealistas, assim como para a iconografia medieval, as pedras foram signos de irracionalidade, e a arte contemporânea encarregou-se de subverter todas referências de tempo e espaço. Desta forma, sendo menos um motivo descritivo e mais um elemento de linguagem e semiótica, as pedras assumem funções variáveis no tempo e no espaço, e o seu sentido é flutuante. Afinal não são objetos deterministas, mas sim sobredeterminados, isto é, capazes de serem investidos pela nossa imaginação, da mesma forma que uma nuvem.
Pessoalmente, sempre me intrigou o chão de pedras que Portinari pinta em Os Retirantes, simultaneamente elemento de construção da profundidade do quadro e sintoma da perda de humanidade daquele grupo de pessoas, assim como me intrigam as pedras “informes” de Paulo Monteiro, as pedras em cima de livros de Ícaro Lira, as “bibliotecas” de pedras de Marcelo Moschetta, os monólitos pesados/leves de Elisa Bracher ou os misteriosos cristais de Tunga. Não deixa, por isso, Ensaio de acrescentar novas camadas sobredeterminantes a esta longa genealogia de pedras.
Composta por nove elementos dispostos no piso superior da galeria, Ensaio é um prolongamento da recente intervenção que a artista realizou no Museu do Açude, em 2018, intitulada Jazida. Se no Rio de Janeiro o caráter elegíaco e tropical da paisagem conferia um sentido lúdico ao conjunto, na galeria Raquel Arnaud a instalação confronta-se com o cubo branco e, inevitavelmente, com aspetos da falência do seu modelo moderno. Desta forma, a leitura que podemos fazer do conjunto não é unívoca, mas dispersa-se em pontos de vista quase cinematográficos, equilíbrios instáveis e justaposições que rejeitam a narrativa (e a História), como se de um mecanismo de produção de atritos se tratasse.
O tempo não cronológico relacionado à ruína, ao semi-soterrado ou semi-aflorado que emana das peças dispostas no chão da galeria demonstra-se na justaposição de elementos que se contradizem uns aos outros. São peças (e pedras) que se constroem e se destroem ao mesmo tempo, vestígios daquilo que outrora foram pedestais e outras arquiteturas edificantes. E existe, por outro lado, um ritmo de improvisação e de ensaio em que os eixos de rotação de cada uma das esculturas organizam uma “cena” sem hierarquias e sem nome. Como escreve o crítico Juan Ledezma: “Contra o pano de fundo das possibilidades ensaiadas da abstração, [os objetos de Elizabeth Jobim] carregam um potencial imprevisto: o confronto do sujeito histórico com o silêncio recalcitrante das coisas, à espera de ser reivindicado por um discurso ainda a ser pronunciado”.[3]
Finalmente, sendo a transparência o fundamento do nosso sistema de representação de imagens e vivendo nós hoje em um regime de visibilidade excessiva, a opacidade do trabalho Elizabeth Jobim adquire aqui um caráter de transgressão. Não se trata de gestos espontâneos, mas de cálculo tático e rigor de demonstração investidos contra a fluidez e a vulnerabilidade de um mundo repleto de sinais confusos. Pedras jacentes para nossa interrogação.
[1] Paulo Venâncio Filho, “Pintura Plena” in Elizabeth Jobim, Cosac & Naify, São Paulo, 2015.
[2] Rodrigo Naves, “As coisas certas”/Galeria Raquel Arnaud, São Paulo, 2000.
[3] Juan Ledezma, “A Constructivist Diagram: Beth Jobim’s Archaeology of Abstract Forms”, Texto da exposição In This Place, Henrique Faria Fine Art, Nova York, 2017.
Texto da exposição Ensaios na Galeria Raquel Arnaud, São Paulo, 2018.
No encontro com a obra de arte somos frequentemente remetidos a um lugar de expectativa passiva, a uma paisagem árida onde impera uma não-ação/interação meramente contemplativa, e apenas interiorizadora dos frugais conteúdos já definidos e transportados naquela obra. Esta, com excessiva regularidade assim nos encara fixamente, fechada e altiva, segura e esperta, orgulhosa, já bem assente no alto de sua categoria rigorosa, pretensiosa e hermética, de objecto artístico. E assim ela é tantas vezes: irônica e apenas bela, autoreferente e logo fechada, cativa, rasteira, estéril. Com demasiada frequência, ao intentar reduzir-nos a uma condição de meros espectadores sedentos de qualquer curva intensa, côr escura, ou belo truque, a obra se anula e se minimiza; abdicando, logo a priori, de sua força e de seu potencial, por maior principio elevados e infinitos. Assim, claramente, ela desconsidera uma sua função primordial e pertinente nesta existência: iluminar em luz sutil o ilegível, mostrar em campo aberto esse impossível, e assim sendo, eis um invólucro sublime: o lugar maior dos enigmas mais possíveis.
Parece ser que esta tão rara e tão simples ambição – transformadora na sua sensível mas inegociável abrangência indefinida -, é uma das mais fundamentais e preciosas características que atravessam a já larga obra de Elizabeth Jobim. E assumindo desde já a parcialidade subjcetiva desta nossa leitura – que nunca pretenderá resumir esse todo intraduzível que é a obra -, queremos aqui sublinhar uma certa recusa firme desta longa construção em se assumir finita, objectiva, ou mais definida. A obra de Jobim rejeita – em seu mais profundo sentido, em seu mais fino conteúdo ou essencial caminho -, o ser decifrada e até clara. E é também esta teimosa e fundamental direção ausente – porque ela é terreno puro que nunca aceita ser apenas mapa – que se mantém e que alimenta, contínua e incessantemente, o coerente dissertar questionador e exploratório desta artista.
O mistério irônico que sempre acompanhou este percurso aberto – de temperamento forte e irrecusável, de uma certa subjetividade sensível e disponível mas exigente, e claramente orientada em relação com o sujeito que o observa e sente – é uma espécie de suporte a um vazio maior por preencher. A obra de arte parece aqui assumir-se como estrutura aberta, indutora de uma interioridade espacializada, de conteúdo altamente sutil, e propositadamente indeterminado. É o sujeito que efectivamente dá aqui vida à obra, numa relação tão incontornável quanto etérea e volátil. Mas, e bem ao contrário de outras obras contemporâneas em que essa manobra é diluída e disfarçada, como que decorada e meio escondida por entre floreados formais de diverso tipo, com Beth Jobim parece ser uma certa crueza despida e bem direta – francamente assumida na mais notória natureza funcional da obra -, o meio mais explícito de nos mostrar suas abertas e interdimensionais fronteiras.
Podemos hoje sublinhar claramente que a produção de Beth Jobim chegou sólida na construção de um lugar em que a linha e a cor, o objeto e o fundo, o sentido e o espaço, trocam indefinidamente de razão e de paragem, sempre avançando e mais elevando a tal recusa de resposta ou definição, simples conteúdo ou direto sentido. Antes, apetece falar de uma certa transcendência experimental, sempre em crescendo, na nossa relação com a obra e com a essência maior desta artista. Esta escapa, claramente e no seu espírito mais elevado, aos códigos mais comuns de simples entendimento e de fácil catalogação, a que nos fomos, talvez, tristemente habituando.
O profundo eixo largo e solto desta obra – muito mais do que só incerto, vago ou indefinido -, parece querer ser um ambiente emocional puro, altamente receptivo, potencializador e limpo, parado vivente, como o branco mais sutil de uma tela em branco. Mas com Beth Jobim é a côr única que assume, e mais claramente a partir dos anos 2000, uma presença psicológica verdadeiramente essencial, ao intuir e abrir distintamente na percepção do espectador, uma intensidade espacial interior que aqui lhe aparece como que exteriorizada. Esta ponte animada entre o sujeito e a obra, tão delicada e tão subjetiva que a cor representa e corporiza – sendo aqui pano de fundo e firme centro simultâneos da ação mais possível da arte – talvez configure a grande vitória do caminhar da artista. Esta só é conseguida após anos de experimentação, de descoberta, de risco, e de um corajoso avançar sempre. E assim ela agora nos encara, e nos acolhe: suavemente exigente mas intimista, uma força viva e calma e apenas lentamente segredada, num farto contraponto a sua incontornável e mais que infinita potência.
Então, e como vimos em 2013 no MAM do Rio de Janeiro com seus Blocos – pinturas que desceram para o chão, e que já como troncos sólidos se erguem, e se elevam -, bem mais do que a inicial estranheza e incerteza, é uma certa sacralidade silenciosa, potente e antiga, que domina agora a obra da artista, bem como nossa deferente relação com ela. Isto se dá através da imersão numa instalação algo mágica – em que a soma do conjunto reforça a tensão e a potência de cada parte/bloco, numa retroalimentação incessante, vital e espessa -, na qual sentimos claramente sermos lentos visitantes, limitados pela vontade de entender e de interpretar, aquilo que apenas parcialmente poderemos ativar e compreender. Beth Jobim parece aqui conduzir-nos a um alto cume – deserto habitado, intenso e pleno -, da paisagem farta que foi construindo ao longo dos anos.
Mas nessa solidão ruidosa e cromática que nos acolhe, tão dura quanto altiva e imanente, coincide germinar também, lentamente, a semente escura de uma fundamental disrupção: a destruição, poética e delicada, da própria perspectiva: afinal, o reduto mais essencial do eu/sujeito. Os Blocos configuram-se – na sua apresentação enquanto instalação/conjunto -, como um simbólico labirinto interminável e infinito em que sua impenetrabilidade é apenas acompanhada por sua frescura vibrante e solene; e em que, seja qual for o sujeito ou o lugar/perspectiva da observação/relação, apenas colheremos resquícios parcos e breves de tudo o que ali se joga, se respira, e acontece. A desmultiplicação ad infinitum das possibilidades e perspectivas de interação claramente contidas na obra, apenas sublinha a pequenez e a redundância de nossa intencional capacidade intelectual, bem como a artificialidade limitada – porque forçada – de nossa abordagem. O desdobramento tão simples, e ao mesmo tempo tão ilimitado e incompreensível, que ali espreitamos, serve-nos de sinal claro do nosso apressado e estreito estado. A instalação da artista reduz assim – na sua vivência mais pragmática -, o espectador a um mero testemunho, que apenas mal valida a existência plena desta obra. Pois essa paira sempre, lá bem alto, acima de nossas razões, de nossos gostos, de nossas mais que restritas capacidades; assumindo-se, nesse forte contraste tão terminante, como um percurso/roteiro abstrato de inabarcável poética, de maior mistério, e de um alcance sensível e espraiado, intangível e absoluto.
Assim aqui descobrimos, que ao contrário da tal expectativa passiva e redutora que tão correntemente encontramos e vivenciamos na obra de arte, Beth Jobim nos introduz a uma imantada realidade que nos ultrapassa, sim, mas com alto crédito e de margens intocáveis. De certa forma, se olharmos para os Blocos sem querer ver ou entender, sentindo e intuindo apenas, seremos subtilmente recompensados por essa tal largueza abstrata e sensível, – poética e delicada, mas de uma autoridade e robustez incontornáveis -, que apenas julgaríamos encontrar na intimidade mais primordial de nossa existência. Essa qualidade simultaneamente universal e particular, intimista e extensa destas obras, seria talvez o mais desejável denominador comum de qualquer ato artístico; visto este enquanto símbolo máximo da prática da vida, e resultado superior da mais criativa liberdade. Aqui, deslumbramos inteiros nesta sua expressão, tão funda e tão rica, e formalmente – com espanto -, tão simplificada.
Se a meio da década de oitenta Elizabeth Jobim participa já da célebre exposição Como vai você geração 80?, – que viria a revelar-se um marco na história das artes visuais brasileiras, reunindo 123 artistas das mais diversas idades, tendências e formações -, a experimentação e a busca marcam claramente a ação criativa do seu trabalho na época, bem como o contato com outros artistas como Jorge Guinle ou Tunga. Questões como uma certa imprecisão significativa da forma, o figurativo e o conceitual, a própria tradição pictórica do desenho de observação e a natureza morta, e um traço que aparece por vezes aguado mas é sempre forte e expressivo, surgem já nos primeiros desenhos e estudos da artista. A fluidez desse traço grosso, solto e energético, aponta já claramente para uma leitura fortemente sensorial e subjetiva, psicológica e livre, do mundo e do objeto.
A própria história da arte é incluída por Beth Jobim em seu trabalho, na série de desenhos a óleo e carvão em que visita e repensa as formas das esculturas Rapto das Sabinas, do flamengo maneirista Giambologna. Ou ainda Laocoonte e seus filhos, de escultor helenista desconhecido do séc. II A.C. O resultado são obras em que à ordem plácida do mundo ordenado – do drama e do belo -, se contrapõe a força do imparável movimento que gere todas as coisas; se ensaia a exploração plástica de uma interioridade pulsante e libertária comum a todos os tempos; e onde, de certa forma, se afirma a supremacia do invisível, do indefinível, do emocional. Hoje, olhando esses trabalhos da artista, descobrimos claramente os esboços firmes – já carregados de poética e sensação – de toda uma obra questionadora da relação entre a linha e a côr, entre o conteúdo e a essência, entre a forma e a fronteira. Jobim desenha sobre papel, e seu traço solto e bem marcado é acompanhado por uma cor já livre de sua forma – de sua função mais lógica, de seu simples dever de preenchimento -, e já com essa forte presença sensitiva e subjetiva. A relação entre o traço e a cor assume claramente nuances de uma liberdade sem interdependência, bem como a ausência – fortemente sublinhada – de regras de qualquer forçada coexistência. E uma certa metafísica sensível paira já por aqui, lentamente, emanando…
É igualmente impossível não mencionar aqui as pedras e os tubos de tinta que a artista desenha e pinta, a grafite, a óleo, a guache e a acrílico, ainda durante a última metade da década de 90, e
nos primeiros anos da década de 2000. Se olharmos a pedra como o expoente máximo da imutabilidade e da não vida, Beth Jobim, ao retratá-la em grupo, com uma forte componente animada e pulsante, e claramente dotada de seu próprio ritmo, sentido e vitalidade, dirige nitidamente a nossa atenção para o que subtilmente se esconde por detrás da materialidade; sublinhando assim essa emoção pura que habita todas as coisas, e norteando sua obra de forma clara rumo a essa imaterialidade incerta e fundamental. Seus tubos de tinta, pintados com o mesmo óleo que sempre acompanhou, privilegiadamente, a tradição e a história da pintura, aparecem-nos igualmente dotados de uma vida animada – contorcidos em interação e movimento -, que os retira da condição de meros instrumentos passivos ao serviço superior do artista. E se alguma ironia nos é agora aqui sugerida, ela é certamente ultrapassada pelo questionamento claríssimo da função da arte enquanto mera representação/interpretação linear do real; bem como pela crítica à presunção do artista como agente privilegiado e convencido, e que assim domina e traduz superiormente as mais importantes particularidades objetivadas – e apenas por ele liminarmente traduzidas -, da vida, das formas, da realidade.
Podemos aqui arriscar estabelecer – e talvez até fosse esse sentido ignorado na altura pela artista -, que ao destituir de seus mais práticos e simples sentidos tanto o objecto/natureza-morta, quanto o próprio elemento/instrumento mais fundador e sublime da pintura – o óleo -, Beth Jobim abre irremediavelmente o caminho de sua arte, e assim o liberta dos pesos das mais clássicas e normalizadas tradições, processos e leituras. É portanto, desta radical e sensível forma, que a artista mais alarga o seu alvo aberto, num generoso e fundamental processo, também intuitivo: de emoção, abstração, presença e liberdade. Tendo visitado os clássicos e seus mais imprescindíveis métodos e componentes, a obra da artista se intemporaliza inteira nesse encontro, simultaneamente integrando e se livrando desses caminhos circunscritos e objetivos.
Talvez a produção inteira de Beth Jobim se pudesse chamar de Epistemologia Sensível da Cor, e esta não seria uma denominação demasiado ambiciosa nem apenas teórica, como vimos. Se a libertação e a ultrapassagem de métodos e de processos correntes na pintura foram por ela realizados na prática, a liberdade e a vivência daí decorrentes não são fruto de exercícios do pensamento, nem de formais manobras de estratégia. Igualmente, a força abstrata que sua obra contém hoje, já bem concretizada, e a pujança poética que a ativa e habita, foram sendo conquistadas ao longo de anos de (des)construção, invenção, experimentação e erro. E todo esse percurso está ali bem presente, num reino da cor, sublime e delicado, em que apenas uma vibrante subjetividade se deita, com a essência mais livre e mais funda, do único tom.
Ao chegar a povoar a cor com tal grau de entendimento e disponibilidade – conosco partilhando em pleno dessa possibilidade aberta -, a artista realiza uma delicada aproximação e uma final síntese possível, ao que vinha ensaiando desde seus primeiros trabalhos.
No virar da década o acrílico escorre ainda por vezes no papel em branco, e um ar de esboço quer se insinuar, enganoso, pois lembra tempos já idos desta obra, mais do que aponta caminhos novos de seu futuro. Mas na realidade, a própria aquosidade desse traço – em que a tinta aparece dissolvida e escorrente -, parece ser também a firme assinatura, agora renovada, de sua decisão de não ser fronteira ou limitação, contorno ou definição, apenas linha. É nesse traço que corre desbotado – no qual parece querer fundir-se já todo o seu próprio fundo, nessa reunião fundamental que a artista consegue, acima de qualquer coisa -, que a cor se assume finalmente como objecto e espaço e história, inteiros. Afinal, um basilar interveniente, e cabal drama, de toda a obra.
Assim encontramos nas obras de Beth Jobim da década passada grandes telas/módulos horizontais que se unem sobre toda a largura das paredes, e em que muitas vezes o branco é delimitado pela cor que o liberta e aprofunda; formando estruturas que parecem – como sempre – trabalhar mais um espaço emocional e referente ao tempo do sujeito, do que propriamente o espaço físico que imitam e mimetizam. Já sabemos que o que se arquiteta nestes pseudo espaços da materialidade é de outra ordem que não a do concreto, e que essa dualidade dramatúrgica é simultaneamente óbvia e sutil, clara e misteriosa, linear e abstrata. Estas estruturas/fronteiras parecem querer assumir-se apenas como algumas das possíveis, e assim gritar – disfrutando -, de sua/nossa liberdade, cantando, silenciosas, desses lugares interiores e nossos, que por vezes, confundimos com o próprio mundo.
Mais para o final da década já a cor se alarga, ocupando por vezes um espaço inteiro, e agora, talvez mais sóbria e mais intensa, se deixa conviver com o branco, sempre o branco; e os módulos se desencontram, sobressaindo em profundidade, umas telas mais grossas do que outras, assim assumindo esse desencontro particular e intrínseco, numa relação tão íntima e reunida quanto libertada e madura. Muitas vezes, é desconcertante a não resposta a nossa incontornável expectativa – que aqui até parece ser testada e provocada -, e olhamos, reduzidos, do centro de uma qualquer sala, aqueles fartos labirintos que ali se abrem, tão belos e calmos e tão vivos, sem saber, ou melhor esquecendo, que não é de fora que se descobre ou se explica.
Se encontramos derrubada e libertada a cor enquanto barreira e filtro do mundo sentido, se seguimos cravejados nessa viagem estática, tão intelectual quanto sensória – de uma paisagem que apenas muda para melhor se ir definindo, e de acordo com o nosso ritmo possível de entendimento -, é neste tempo que se reafirma o fluxo continuo na obra da artista, inundando fértil o espaço expositivo, invocando sempre uma sensorialidade e um psicológico navegantes, em rumo pleno, numa continuidade imparável, sem pausas ou minúcias. Assim, chegamos a obras que se assumem tratar do todo, ao mesmo tempo intimo e geral, particular e global, do momento e do eterno.
Se Oiticica liberta a cor de seu suporte, e se com ele mais livre ela esvoaça; Beth Jobim a segura de novo em corpo/obra, e agora, invólucro sublime de qualquer centro, ela é feita totem fixo em movimento. Ei-la, então assim: ancorada em seu mais que interno mergulhar, livre de ventos, de embates, de impulsos, e até mais livre, de um qualquer olhar, para existir.
É desse fluxo interior continuo que tratam os Blocos, como já vimos. E ao invés de âncoras a prender o tempo ou o olhar, vivemos ilhas que navegam, abrindo o mar, suspensas desse interno movimento: chamando, vibrando, sentindo sempre.
Também aqui o vento de Oiticica é invocado, ou aparece, nesse andamento que faz a cor voar, hoje parada. Só que aqui, imóvel e intocada, ela só arde. Plena, inteira, e sempre eterna.
E assim, é ao contrário: levar todo e explosivo, o Mundo para o Museu. Eis a façanha.
Rio de Janeiro, 2015.
Esta exposição de Beth Jobim é um momento novo de sua obra, deslocando a pintura e a cor para atuarem diretamente no espaço real do espectador. Os Blocos são ao mesmo tempo pintura, escultura e instalação. Eles funcionam isolados, como blocos ativos de cor, mas também podem ser integrados enquanto instalação, dinamizando todo o espaço a sua volta. O espectador deve percorrê-lo livremente, criando sua própria narrativa de apreensão e circulação. Creio, entretanto, que o elemento condutor será a atração cromática de cada bloco que vai puxando o movimento do corpo nesta ou naquela direção.
Este novo momento de sua obra, todavia, já vinha amadurecendo há algum tempo, com os planos de cor se avolumando e se deslocando na superfície da pintura. Neste salto dos Blocos – remetendo aos objetos ativos de Willys de Castro e também aos objetos específicos de Donald Judd – a estrutura geométrica fica mais solta, assumindo uma corporalidade mais frágil e menos impositiva. As relações de cor são criadas nos intervalos pelos quais o espectador caminha e a apreensão integral da forma instalada só se dá por partes e de modo fragmentado. Os Blocos são arejados, vibram com a presença da cor e deixam o olhar caminhar de modo sereno e sem pressa.
Texto da exposição Blocos no MAM, Rio de Janeiro, 2013
Escrever sobre os legados do neoconcretismo na arte brasileira tem sido uma constante nos últimos anos. Temas como arte e vida, geometria sensível e organicidade viraram recursos infalíveis desse atravessamento temporal e estabeleceram um modelo para a passagem entre modernidade e contemporaneidade nas artes visuais brasileiras. Afora os ruídos dessas categorias, a obra de Elizabeth Jobim ressalta o melhor desse diálogo entre neoconcretismo (ou as linguagens construtivas brasileiras) e as produções artísticas posteriores. Enquanto no neoconcretismo, o vazio constituía-se como volume das obras e transmitia, entre outros estatutos, uma qualidade de corpo às formas, ou pelo menos uma disposição de diálogo mais efetivo e afetivo com o mundo – se pensarmos, por exemplo, nas obras de Amilcar de Castro, Lygia Clark, Sergio Camargo e Willys de Castro que por sua vez estabelecem um diálogo fecundo com Jobim -, na mais recente série de obras de Jobim, essa pesquisa ganha continuidade e desvios: o vazio torna-se dispositivo para a fabricação de lugares ao mesmo tempo em que há um duplo movimento nas suas obras. Das telas ao ganharem volume e buscarem incessantemente um lugar no mundo; há uma certa insatisfação em serem apenas representações bidimensionais. O que está diante de nós são quartos, ambientes, salas, portas e toda a sorte de espaços arquitetônicos. Em determinados momentos por meio de uma experimentação com distintas qualidades de tinta e cor, Jobim consegue chegar a uma superfície brilhante na qual o nosso corpo finalmente invade aquele espaço. Nesse processo de espelhamento, nos vemos habitando aquela casa. O tamanho antropomórfico das telas e o fato de estarem muito próximas ao chão dialogam com a ideia desses espaços convocarem uma presença, de quererem ser preenchidos.
O segundo movimento é o do corpo do espectador ao investigar os deslocamentos, torções e passagens que suas obras nos revelam ao tornar aparente o seu interesse pelo intervalo, pelo espaço entre os módulos, por uma fresta que não é tão somente o espaço que divide as telas mas uma linha que assume a fratura como índice para o corpo. É o vazio assumindo a sua condição de parte integrante da obra e por conseguinte inventor de lugares. Como partes constituindo um todo, temos a ilusão de que construímos incessantemente esses espaços porque eles nunca terão formas definitivas, apesar de rigorosamente acabados no interior da razão em que foram pensados.
Fora o fato da obra de Jobim ter estreita ligação com as linguagens construtivas e com a história da pintura, sua pesquisa iniciou-se a partir de desenhos tendo as pedras como modelo. É curioso e compreensível o fato da artista operar ao mesmo tempo um dado secular da história da arte (a natureza-morta) e transformar a experiência de ver e exercitar volumes de um elemento inorgânico em criação de linguagem e afeto, isto é, em como aquela forma pintada sobre a tela que venhamos a identificar como corpo tem sua origem no que há de mais concreto, bruto e ao mesmo tempo transitório, que é a própria natureza. A obra parece questionar até que ponto ela é abstrata. Jobim está interessada nas dualidades, nos estados contínuos de mudança e fundamentalmente em tornar visível esses movimentos/imagens quase imperceptíveis.
Se em séries anteriores, era a tinta que invadia as laterais da tela, marcando essa “quebra da moldura” ou o desejo da linha em perseguir o espaço além de uma bidimensionalidade assim como o mesmo movimento podia ser observado na fratura entre as telas, ou ainda no branco/vazio que era o pano de fundo para a aparição de um grafismo arquitetônico que, em vários momentos, absorvia um signo da cidade (o jogo de azulejos e o calçamento, por exemplo), agora sua nova série diminui os espaços vazados mas não o seu dado fenomenológico, ou seja, a sua capacidade de a partir de uma economia de elementos ou de um mero gesto desarticular as certezas sobre o visível e inventar jogos de percepção que nos faz mergulhar em uma imprecisão sobre os nossos sentidos. Da mesma forma que o espaço está sendo experimentado, igualmente acontece com a cor. Em um processo de seguidas camadas, o vermelho adquire uma cor de ferro, ou o azul que depois de um incessante processo de artesania transforma-se em um roxo. Os espaços construídos pelas telas não querem ser facilmente identificados pois transitam em um território que fica entre o real e o imaginário. Jobim sustenta a “natureza primária da arte”: permitir que a obra seja um eterno enigma.
Texto da Exposição Mineral na Galeria Lurixs, Rio de Janeiro, 2012.
Artista que inicia sua trajetória na década de 1980, Elizabeth Jobim vem desenvolvendo uma produção que busca repensar a pintura sob o ponto de vista contemporâneo e a partir dos impasses impostos pela arte moderna. Jobim realiza desde os anos 2000 grandes instalações pictóricas em partes moduladas que são concebidas para lugares específicos, como é o caso de Em Azul, realizada especialmente para uma das salas da Estação Pinacoteca. Ao propor uma nova espacialização para seu trabalho, essas instalações transformam a desestabilização do campo perceptivo efetuada pela pintura moderna mediante o questionamento da relação entre figura e fundo na pergunta pela própria estabilidade do corpo e das coisas no espaço.
Como em trabalhos anteriores, a artista parte da observação de pedras que organizadas como naturezas-mortas dão origem a desenhos nos quais se manifesta seu pensamento inicial sobre o espaço enquanto intervalo e também ativador dos limites entre os objetos. Transpostos para a escala da sala de exposição, esses conjuntos se recombinam em uma nova seqüência de formas e linhas cuja descontinuidade de enquadramentos, cortes e arestas traz à tona a experiência da paisagem arquitetônica das grandes cidades contemporâneas. No espaço, criam um ambiente no qual noções de finitude e amplidão, cheio e vazio, peso e leveza, distância e proximidade são repostas a todo instante.
Contudo, nota-se que apesar de compostas por fragmentos ou partes, essas instalações buscam uma certa unidade paradoxalmente construída a partir da descentralização do olhar. Se por um lado, é inútil ou mesmo impossível estabelecer marcos estáveis para o trabalho, na forma de um início ou um fim rígidos, por outro, em seu ritmo suave, avesso a movimentos muito bruscos ou marcados, Jobim vai operando pequenos desencontros com momentos de quase imobilidade que incorporados ao todo de maneira harmônica dão fluidez ao conjunto.
Ao mesmo tempo em que se apropriam das dimensões reais da sala, essas instalações conseguem ultrapassar ou reverter seus limites físicos. Imersos neste espaço construído pela artista experimentamos a sensação particular de liberdade que se manifesta no amálgama entre o estar dentro e fora, ora fincados no chão, ora suspensos no ar. E se no caso do trabalho projetado para Pinacoteca a exatidão das linhas e das formas geométricas sugere a estabilidade de estruturas construtivas e os volumes aparecem como reminiscências da solidez daquelas pedras originárias, a capacidade de propagação da cor azul desmaterializa e dá leveza ao que, por suas dimensões, poderia se transformar em arquitetura monumental.
Texto da Exposição “Em azul” na Pinacoteca do Estado de São Paulo, 2010.
Atmosfera das pinturas é ao mesmo tempo aérea e sólida. Clara e franca, como a de uma arquitetura à beira-mar. Os elementos pictóricos não se opõem, mas se contrapõem como na arquitetura, de modo que parece que estamos num outro plano construtivo, diverso daquela casualidade dos arranjos das pedras que serviram de modelo para toda uma série de desenhos que antecedeu as telas de agora. Terá sido uma exigência da pintura? A maior solidez do suporte e mesmo da ação pictórica levaria sem dúvida a um embate mais francamente corporal que visual, exigindo para isso um plano quase que igual e tão resistente como a parede. Do mesmo modo que, no canteiro de obras, o monte de brita fica ao lado do prédio em construção, assim também está o desenho para a pintura. No primeiro, o arranjo arbitrário e casual das pedras, na segunda, a dimensão construtiva organizada da arquitetura. Nos desenhos, a solidez individual de cada pedra era mantida pelo elemento aparentemente mais frágil – a linha. Nada mais do que o simples contorno de espessura mínima era o suficiente para estabelecer a natureza tridimensionalmente rígida das pedras.
Naturezas mais mortas do que essas de pedras não poderiam existir e, no entanto, eram criaturas visuais bastante animadas. Tão animadas que os incessantes desenhos não eram capazes de esgotar todas as suas possíveis infindas variações. Essa contínua experiência deu a Elizabeth Jobim um controle de formas em justaposição, oposição, aproximação, afastamento, que de algum modo teria que exigir alguma presença tridimensional, menos visual e mais física. E não só isso, aqueles percursos que os desenhos sugeriam e ocultavam só poderiam ser experimentados por uma imersão corpórea no espaço pictórico, incorporando à pintura o movimento no espaço real. Seria um exagero ou anacronismo dizer que a tela mesma se tornou cubista? Cubista, não do cubo geométrico, mas da pedra real; de uma solidez tátil, presente e atual. Certa ambiguidade que muitas vezes os desenhos sugeriam – eram a pedras micro ou macro? – parece ter se transferido, com o aumento de escala, para as telas, porém de outra maneira que constantemente nos faz pensar: estamos dentro ou fora do espaço? A arquitetura pictórica agora forma esses planos-janela, aberturas não se sabe bem para onde, entradas ou saídas para a infinitude do espaço. De qualquer forma, mesmo em dúvida, nos encontramos sempre imersos em um bem-estar verdadeiramente matissiano. Um puro espaço simbiótico mediterrâneo tropical nos envolve. Para tal, a insistência e o isolamento desse azul intenso foram necessários. Foi preciso insistir, penetrar no azul: de que outra forma conseguir sustentabilidade numa cor tão aérea? Assim, a solidez arquitetônica se tornou permeável à atmosfera e à sua própria luz. Embora abstratas, desabitadas da presença humana, não há como deixar de ver nessas telas a presença da experiência sensorial da cidade que as originou. Por mais abstrato que seja esse azul, não há como não percebê-lo como uma destilação dos incontáveis azuis até chegar a esse tão sensorial, palpável, franco e amigável, companhia do dia a dia. Só de uma experiência como essa se pode ser levado a construir algo sólido e permanente que é uma pictorialidade arquitetônica, como é o caso aqui. A presença material da tela avança à frente e deixa um canto que ora se esconde ora surge num espaço ritmado, de massas que se apoiam uma na outra, sincopando a alternância, ou melhor, a transição negativo/positivo. Alternância que é atenuada pelo contraste, ou, antes, uma continuidade, entre azul e branco. Passagens que se fazem através da mesma e ininterrupta luminosidade.
Há nessas pinturas uma intensa combinação moderna brasileira – Amilcar de Castro, Volpi, Willys de Castro, Niemeyer, azulejos portugueses, a paisagem do Rio de Janeiro equalizados na mesma temperatura, como se todos esses elementos estivessem reambientados no mesmo frescor e limpidez. Estão aí a natureza, a arquitetura e a pintura, coordenadas por uma sensibilidade que vivencia e renova a pulsão moderna brasileira. Assim, a ancestralidade da azulejaria ibérica aparece viva, monumental, tectônica, sua força decorativa ampliada junto à vontade construtiva. E a pintura como que se torna um mural-colagem; aos poucos, arriscando, vai tomando volume, aparecem sutis arestas, ela como que joga um esconde-esconde ilusionista, extremamente ativo, que é um aparecer e desaparecer, contínuo e descontínuo, sugerindo espaços ambíguos, passagens e aberturas possíveis, por onde se pode estar à vontade. Como no espaço arquitetônico, são caminhos que se apresentam livres ao olhar e ao corpo em movimento, aqui se abrindo, lá se fechando de tão fluido e transitável que o espaço se oferece. Pois ora parece que estamos de um lado da pintura e que poderíamos segui-la até o outro lado, mas no momento mesmo que assim tentamos, descobrimos que voltamos para onde estávamos e as costas se tornaram frente, como passar de um lado ao outro do vidro. Daí a continuidade do fora e dentro que essas pinturas visualmente provocam. Sem a luminosidade que nelas mesmas existe faltaria uma limpidez e clareza próprias, características de nossa cromática construtiva aberta e positiva: a luz transparente que se prolonga entre interior e exterior.
Da arquitetura experimentamos não exatamente fachadas vistas do exterior, mas um contínuo atravessar de portas e janelas, espaços onde não só o olho se movimenta, mas o corpo também: certo caminhar contínuo, rítmico, sincopadamente modulado. Os planos pictóricos se alternam como precisos recortes no espaço e sentimos na clara definição de cada um deles como que a presença da parede real. Mais recentemente surgiu uma cor que, terrosa, ferruginosa, ao contrário do azul, nada tem de atmosférica. Antes lembra o aço cor-ten e daí também as dobras das esculturas de Amilcar de Castro. Se a relação de fato existe, como penso que sim, ela demonstra mais uma vez o espaço moderno brasileiro por onde essa pintura transita e renova – entre o íntimo e o monumental, uma escultura de Amilcar e um objeto-ativo de Willys. Uma pintura da transparência do céu e da solidez da terra.
Texto da Exposição Voluminous na Galeria Frederico Séve, Nova Iorque, 2009 / Publicado em A Presença da Arte – Editora Cosac Naify, São Paulo, 2013.
Lehman College Art Gallery is pleased to present Endless Lines, the first major exhibition in the United States of the work of Brazilian artist Elizabeth Jobim. Itis being presented concurrently with another installation from the Endless Lines series at Lurixs Arte Contemporanea in Rio de Janeiro. Together they offer an important window onto the work of Elizabeth Jobim. Claudia Calirman, the co-curator of this exhibition, first brought Jobim’s paintings to our attention several years ago. The work seemed just right for Lehman. Jobim’s proposal, a large-scale installation of painted canvases placed side by side, would use the gallery itself as an integral part of the work. The Gallery is located in an architectural gem designed by the International Style architect Marcel Breuer. Its exhibition spaces are open with sculptural angles and soaring poured-concrete ceilings. We felt it was a perfect pairing of aesthetic intent and architectural space.
Elizabeth Jobim’s work is about visual relationships, process, and translation from one incarnation to the next. It is a about surface and saturation, boundaries and edges, flow and rhythm. It is also an experiential work that considers the role of the viewer. Created for the Lehman gallery, Endless Lines is a site-specific painting installation with dynamic lines and shapes. While conceived for this space, the process through which the work evolves makes it open to other possible configurations — it will inevitably continue to change in future venues.
Jobim starts with stones, those bits of earth that are so basic and universal yet particular — from the streets of Rio or, in the Lehman exhibition, from New York City. In geologic time they are ancient, as old as the earth itself. Jobim chooses stones with angular facets rather than round, smooth river rocks. With them, she begins a series of transformations — from the object to line drawing, to maquette, to painting. The initial line drawings loosely describe the facets of the stone. They are skeletal, minimalist shapes that tumble across the paper with the flow of a gesture drawing. Sometimes the paper is torn into smaller compositions or sections, then reshuffled. They are transposed to the surface of painted maquettes and again reconfigured, with their arrangement guiding the large-scale painting installation. In the final stage, as the full scale paintings are being installed, the order of the paintings is still subject to editing and change. With each transition, the image is further removed from original reference—the object, the stone.
Translucent layers of ultramarine blue are applied with rollers using stencils to define the painted shapes. They are built up in five or six applications creating variations in the surface color and texture. Luminescent whites move forward and the dark blues slink back, setting up a slight optical vibration. At the edge of each painting, shapes meet and continue from canvas to canvas, sometimes seamlessly, and at other transitions the shapes intentionally misalign, creating an abrupt disjunction to the flow. There is a tension between the flat, two-dimensional nature of these abstract shapes and the tendency to read the connected diagonal lines as orthogonal representations of architectural space — corners, windows, doors. In the context of the Lehman space these angled shapes and lines suggest the lines of the gallery itself.
Endless Lines runs one hundred and ten feet and one cannot see the work as a whole from a singular vantage point as the installation is configured in the Lehman gallery. It is panoramic and envelops the viewer. The impact of scale is immediately apparent. It is necessary to walk around the room to experience it, making the viewer an active participant in the viewing. As one moves through the gallery, shapes subtly shift and foreshorten.
Using similar imagery and drawing on similar sources, the installation at Lurixs Arte Contemporanea pushes the painting medium into three-dimensional space. At Lurixs the paintings varying in depth from 2” to 7”, expanding their surfaces from one plane to three planes. Shapes distort, spill over the edges, and continue around corners. Here too the viewing is participatory and clearly requires actual movement – the viewer must walk through the space to see the entire work. In this sense the work is kinetic. Shapes on the lateral planes are sometimes concealed and at other times continue over the primary surface. As the viewer passes, shapes appear and disappear. Jobim’s installation recalls the objetos ativos (active objects) of Brazilian artist Willis de Castro, whose work pressed painting beyond the limits of the two-dimensional. Jobim’s intervention in the viewing experience also suggests the phenomenological investigations of the Neo-Concrete artists for whom perception and the sensory experience played a significant role. Both exhibitions—in New York and in Rio— change the relationship of the viewer to the object. Both provide an environment through which the one explores the work experientially.
Special thanks are due to Elizabeth for the month she spent in New York this summer creating the work for this exhibition. We are grateful to Claudia Calirman for helping us introduce Jobim’s work to our audience and for her insightful essay. Lurixs Gallery in Rio de Janeiro has provided invaluable support of this exhibition and has helped make this endeavor possible. Finally, we would like to thank the JPMorgan Chase Foundation and the New York City Department of Cultural Affairs for their financial support of this exhibition.
Texto da exposição Endless Lines na Lehman College Art Gallery, New York, 2008.
Onde começa e onde termina uma obra? Há ponto de partida ou ponto final? Um fluxo intermitente de linhas e volumes azuis toma os espaços brancos das telas. Aos poucos se apropriam do espaço ao redor e criam um ambiente arquitetônico. Corte e continuidade, fluxo e interrupção, moradas parciais e ninhos, espaços inertes e ativados criados por linhas que avançam continuamente, entrando de uma tela para a outra. A obra de Elizabeth Jobim está em processo continuo, em fluxo permanente, sempre a se desdobrar em novas formas. Estabelece conexões de um painel ao seguinte ou rupturas e separações repentinas.
O ponto de partida do trabalho de Jobim está nas pedras irregulares que ela coleta no Rio de Janeiro, sua cidade natal. A artista cria pequenos desenhos volumétricos baseados na forma e na aparência das pedras. Estes desenhos, ao olhar cuidadoso, revelam o princípio de compreensão da gênese de suas telas de grande porte. Suas linhas se combinam de um painel ao outro em uma série de superfícies quadradas e retangulares, cobrindo as paredes das galerias, no Rio de Janeiro e em Nova York. O trabalho se renova constantemente e gera diversos padrões e configurações. Na pintura-instalação de Elizabeth Jobim, a ordem dos painéis pode ser alterada de forma a compor diferentes narrativas. É um trabalho onde as partes se conectam umas com as outras para criar o todo. Retas se transmutam em formas volumétricas ou retornam ao seu estado original.
As linhas traçadas por Elizabeth Jobim são tão ousadas como incertas; retas e contorcidas, firmes e intermitentes, finas e largas, planas e volumosas. É como se procurassem vencer obstáculos para adentrar espaços. Aparentam se basear em abstrações geométricas, mas têm, no entanto, suas raízes na figuração.
Fundamentada na sólida tradição latino-americana da abstração geométrica, Elizabeth Jobim subverte o modo com que os artistas das décadas de 40, 50 e 60 empregavam linhas e volumes – como expressão lógica, racional e semi-científica do desejo utópico pela tecnologia e a industrialização. Diferentemente da obra dos concretistas brasileiros, cuja abstração geométrica era predominantemente um jogo conceitual de organização de formas no espaço, as formas de Jobim são, na verdade, baseadas em naturezas mortas. Suas telas jogam com o ato de revelar e ocultar, entre a abstração e a figuração.
Em suas telas, Jobim remete às grandes colagens de Henri Matisse, mais especialmente a sua instalação arquitetônica ‘La Piscine’ (verão de 1952) com sua composição simplificada de grandes espaços, e figuras marcantes semi-abstratas em recortes azuis feitos à mão livre.
Jobim emprega azul ultramar e aplica a tinta a óleo com rolos à moda dos pintores de parede, cobrindo suas telas de forma desigual, criando pontos e manchas que ativam o branco ao fundo através da luminosidade e transparência do azul.
A obra de Jobim evoca as telas monocromáticas de Yves Klein com seu azul característico (que ele patenteou como o International Klein Blue), e sua ligação com o transcendental, a imaterialidade e a espiritualidade. As instalações arquitetônicas de Jobim lembram templos de meditação modernos. A tranqüilidade de seus espaços internos e a energia com que eles impregnam o espaço ao redor de si são inseparáveis e interdependentes.
Ao impregnar o espaço através do azul ultramar, a obra remete ao uso que Hélio Oiticica fazia da cor. Como Oiticica escreveu na década de 60, ele procurava libertar a cor de seu suporte pictórico, sem amarras no espaço. Oiticica criava ambientes sensoriais nos quais a experiência do observador não se limitava às suas retinas, mas propiciava uma relação mais corpórea com a cor. Jobim também conjuga uma percepção da cor que transborda as limitações da fisicalidade e da moldura pictórica, submerge o espectador no azul. Ao adentrarmos o espaço, somos arrebatados para dentro da instalação, absortos pelo seu fluxo elegante de formas e linhas.
Filha de Antonio Carlos Jobim – pai da Bossa Nova – Elizabeth Jobim demonstra a influência da música e suas conexões com tempo, intervalos e composição. Sua obra joga com continuidade e rupturas, como notas musicais arranjadas no tempo, que tropeçam, gaguejam, se perdem e se reencontram repetidamente. Nesse jogo sem fim – sem um final definido, nem um ponto de partida isolado – as linhas seguem dançando, vibrando em azul, ao passo de sua própria cadência.
Texto da exposição Sem Fim na Galeria Lurixs, Rio de Janeiro, 2008.
Talvez pudéssemos interpretar, de forma um tanto quanto simplificada, a passagem do desenho à pintura na produção dos últimos anos de Elizabeth Jobim como a transformação da natureza-morta em paisagem. Naturalmente não penso aqui numa concepção tradicional destes gêneros. Sabemos que os arranjos de pedras presentes como o “assunto” dos desenhos da artista na verdade respondiam às questões diversas: da incompletude e transitoriedade da percepção à dialética entre espaço interno e externo das coisas. No entanto, a meu ver, mesmo em trabalhos constituídos pela montagem de folhas de papel (2000/2001), conserva-se uma certa intimidade, uma estruturação que ainda parece extremamente marcada pela inconstância do olhar, pela indistinção entre a interioridade do sujeito e do objeto, engendrando mundos prestes a desabar, como observou uma vez Paulo Venancio Filho.
Tais arranjos foram ampliados e passados para tela. E o que vejo são paisagens, vistas fragmentadas de uma arquitetura penetrada pelo ar. Seu ritmo horizontal e descentralizado remete ao recorte de um mundo sólido mas que só pode ser apreendido através da agregação descontínua de suas partes. Esse espaço não parece mais viver sob a ameaça de uma força centrípeta. Ele se exteriorizou e se expande na planaridade airada do branco.
Em comparação às pinturas apresentadas em 2005, a produção recente da artista parece explorar de forma concentrada a conquista deste novo espaço. As massas de cor azuis estão mais presentes, aumentando o ritmo de alternação entre dilatação e contração. Sua transparência agrega um tempo moroso ao desenvolvimento horizontal e expansivo do quadro, absorvendo por mais que alguns instantes o nosso olhar. Elas flutuam e são ao mesmo tempo contidas pelas linhas ou pelas bordas, que as mantêm estáveis, mas pulsantes. A opacidade do cinza, novo elemento da pintura, parece responder, principalmente no grande tríptico de 2006, à dialética que orienta a espacialidade dos trabalhos. Ele instaura uma relação entre duas cores que, em seu entrelaçamento de formas, travam um diálogo particular. Sem se sobreporem umas às outras, elas vão tecendo a arquitetura aberta dos quadros.
Voltando à paisagem, com certeza não se trata aqui da vontade objetiva de apreensão do mundo exterior ou da organização da natureza de forma mais ou menos verossímil. Diante das construções leves e sólidas de Elizabeth Jobim, recordo-me da amplitude das fachadas de Alfredo Volpi ou da dilatação espacial dos céus movediços de Guignard. Uma noção de espaço que se encontra num lugar indefinível entre a utopia da harmonia entre o mundo natural e a arquitetura, o espaço privado do habitante e o espaço público da cidade, e a experiência expansiva e bastante concreta de um fim de tarde de verão em frente ao mar.
Texto da exposição Horizontais no Gabinete de Arte Raquel Arnaud, São Paulo, 2007.
Estamos diante da pele do vazio. E ela nos envolve como a pele envolve nossa carne. A pintura nos abraça nesse ambiente que nos acolhe. Estamos recolhidos pelo espaço projetado pela artista como a pele recolhe nossos músculos, nossa carne, mas é pintura. Essa pele não tem nada a ver com os apelos orgânicos, quer ser só pintura, colada na parede, e nos envolve. O que Beth nos solicita tem tudo a ver à lição do poeta de uma “educação pela pedra”, agora quase literal.
Esse ambiente que nos abriga como numa capela, é preciso que se diga logo: é constituído por naturezas-mortas. Essa imensa natureza-morta, tão distante de vasos de flores ou frutas sobre a mesa é a forma contemporânea desse antigo gênero. A artista desenha e pinta diante de pedras mínimas, que cabem nas mesas de seu atelier. É da observação dessas pedras, de seus desenhos feitos e refeitos que nascem essas telas. Pequenas pedras que se tornam monumentos pictóricos.
Quando nos encontramos no interior das Aberturas estamos seguros que ela funda o lugar do corpo na contemplação da pintura, estamos inteiros diante de uma única e inteira panorâmica. A cidade havia inaugurado essa possibilidade de vermos uma múltipla paisagem em 360º, tão diferente do bucólico campo. A feira, a rua, o jardim, a catedral, o burgo, o convento, tudo se misturava na grande confusão da chegada da vida citadina. Beth Jobim nos pede uma ordem. A ordem da pedra: dura, seca e fundamental, ao mesmo tempo a forma material da poesia de uma geometria que se torce num acontecimento único no qual figura e fundo, plano e profundidade se interpenetram para deixarem de existir na pintura azul e branca. É como se tornasse visível a passagem de João Cabral: “A lição de moral, sua resistência fria / ao que flui e a fluir, a ser maleada; / a de poética, sua carnadura concreta; / a de economia, seu adensar-se compacta; / lições da pedra (de fora para dentro, / cartilha muda), para quem soletrá-la.”
Texto da 5ª Bienal do Mercosul, Porto Alegre, 2005.
Passa um vento pelos rochedos vazados. São notícias do vazio no qual se transformou toda profundidade. Vento que desmancha até mesmo as pedras. Desfaz o desenho e acaba com a rigidez do mundo. É preciso negar a firmeza precária das coisas para reconstituí-la na realidade da arte.
Que mar ousaria bater nessas pedras quando seu branco já é o próprio oceano? Temos, finalmente, uma terra plana onde se navega até o limite de seus horizontes – o quadrilátero do papel. Mundo feito de tantos mundos, montados, justapostos, contínuo aqui, logo ali um desencontro, numa clara evidência que tudo é construção. Feito também do volume ousado, audacioso demais para a superfície que o domina: os corpos se esboçam para logo se desfazerem no deserto branco do papel. Quem habita esses corpos, que parecem não suportar a si próprios, senão o mesmo que se encontra fora? As pedras existem para limitar o vazio, dar-lhe uma forma, cercá-lo e contê-lo numa absoluta exterioridade.
Todos insistem: são desenhos. Agora, realizam a virtualidade dos monumentos que já indicavam quando eram apenas esboçados nas mais modestas dimensões. Quando foram experimentados em linhas frágeis que contornavam as figuras das pequenas pedras. Cresceram. Nunca precisaram inventar um abismo, nem supuseram um simulacro de vertigem. Afinal de contas, não há mais clima para a verdadeira queda. No máximo, haveria um tombo ridículo.
Na escala mural, se existe um referente, é alusivo à pedreira onde a engenharia dos homens teima em morder a natureza. Está ali, em movimento na superfície do papel. A artista não tem escolha, talvez finja que desenha, mas pinta. E poucas esculturas subverteram e redefiniram a noção intuitiva que trazemos de espaço como essas pinturas. Dilatou o espaço, me colocou numa praça, sozinho, sem a multidão e seu burburinho, na cidade deserta feita de pedras. Desorientou meus pontos cardeais e não me submeteu a nenhum tempo em camadas, que teria sido acumulado em sucessivas operações estabelecidas pela tradição do trabalho pictórico. O tempo de sua realização, ao contrário, é aquele absolutamente visível e atual, tempo da construção simultânea do dentro e do fora que se confundem, que se imiscuem um no outro, que se apresentam como vazio e, ao mesmo tempo, lugar do trabalho que o delimita. É uma pintura que se afirma tanto onde se encontra, como nos vazios que determina pela sua ausência.
Quando tratou da escultura de Franz Weissmann, Alberto Tassinari encontrou a bela imagem contida na idéia de “espessura do espaço” para definir a questão da sua obra. O espaço trabalhado pelo artista construtivo, portador dos melhores valores da alta modernidade, é ainda o mesmo da noção clássica grega, aquele que permitiu o desenvolvimento da geometria euclidiana. O ponto histórico no qual se encontra a pintura de Elizabeth Jobim é outro inteiramente diferente e não permite nem mesmo hipostasiar o espaço. As metástases em que se transformaram as grandes metrópoles e seus fluxos culturais, que se constituem desde as tribos dos subúrbios até os grandes condomínios financeiros globalizados, corroem até o uso metafórico da noção de espaço. Nesse ambiente, por que não buscar a possível neutralidade das sólidas pedras para redefinir a questão?
A transparência, a tênue película que a tinta forma sendo absorvida pelo papel, a aversão à presença da matéria, a cumplicidade com a força da gravidade que completa a presença da cor e atua na superfície, tudo colabora para assistirmos a uma reposição das questões da profundidade na pintura depois do esgotamento da moderna investigação planar. A pintura de Elizabeth Jobim elabora e desenvolve o problema sem olhar para trás: não há nostalgia da perspectiva. Recurso que, com seus pontos de fuga, sempre implicou em olhar para frente, para o futuro que se deslocava em direção ao infinito. Tampouco insiste em permanecer reiterando a questão cubista. O olhar tem que assumir sua atualidade. Não encontra espaços para representação.
O vazio sempre foi atributo do conceito platônico de espaço, mas se observo o problema com mais cuidado, verifico que, abandonados os códigos da representação e os de sua destruição, a questão da profundidade se transforma e destitui o lugar do espaço para substituí-lo pelo do seu atributo, o vazio. Nesse novo lugar, o vazio se desloca de uma posição adjetiva para uma substantiva. Há, sim, nessa pintura, a pergunta constante sobre que profundidade é essa que, hoje, sem pontos de fuga, se encontra livre e destituída de qualquer corpo na espessura do vazio. É, também, para tornar isso visível que, a meu ver, pedras e rochedos são pintados por Elizabeth Jobim.
Texto da exposição no Centro Cultural de São Paulo, São Paulo, 2003.
Por que essas coisas tão inóspitas, tão sem-assunto, pedras? Pedras são pedras, sem mistério, alegoria, símbolo — coisa à-toa, para se chutar. E esses desenhos se referem a pedras de diversas maneiras. São quase um estudo da pureza sólida do mineral. Matéria, forma, peso estão aí bidimensionalizados. Mas estão, especialmente, como coisas comuns e sem atrativos que amontoados ao acaso formam um conjunto que nada mais é do que uma natureza-morta de pedras. Algo verdadeiramente inédito, que se imaginássemos uma land art miniaturizada, teríamos a Spiral Jetty de Robert Smithson sobre a mesa, posando. E a referência ao escultórico — até ao monumental — não é descabida aqui, pois esses desenhos trazem, indiretamente, todo o processo de desmaterialização da escultura desde a modernidade — a certeza do dentro e fora dos corpos que a escultura foi desfazendo ao longo do tempo.
A mútua invasão dos espaços que os desenhos de Beth Jobim percorrem revela a contiguidade e continuidade de duas formas de apreensão que fazem parte do dia-a-dia. Ao observarmos algo estamos dentro de um todo do qual o observado é a parte dimensionada pela atenção. Esta dá ao observado uma dimensão que desaparece, ou é relativizada, quando desviada, e tudo se redimensiona mais uma vez. Aqui um salto de escalas desliza entre o dentro e o fora dos espaços físicos sensíveis e da imaginação. A atenção flutuante transborda dos limites dimensionáveis e saltamos do macro ao micro.
Esses desenhos se especializaram numa técnica topológica do mergulho. Um plongée, próximo daquele da câmara cinematográfica. As formas seguem a desorientação do líquido que escoa entre fluido e sólido, um tanto sem direção — entre profundidade e planaridade resta escorrer; drip apenas. Ao criar um espaço imaginativo suficientemente abstrato e minimamente corpóreo, topologicamente mutante, o desenho tudo faz para atingir um estado de constante escorrer — matéria dissolvida no tempo.
Estar dentro da pedra e vê-la de fora, num salto de dentro para fora. Por isso, é claro, a metáfora da piscina (matisseana) indica mais que o meramente visual. Um trânsito sinestésico dos sentidos estabelece a circularidade entre natureza e natureza-morta, vida e objeto, representação e existência. Temos um discreto exercício do espaço vivido, em duas direções. A ordenação cuidadosa dos elementos e o cálculo da linha do horizonte se expande até o mergulho, onde a “atmosfera do corpo” domina. Por outro lado somos levados a uma atenção lúcida diante de uma genealogia histórica das pedras. A pureza física de sólidos é o que atrai. Temos pedras de todas as idades, umas velhas, outras jovens, em plena infância e também na senectude. Pedras, coisas que agora quase chegam a ter alma — alma do que nunca foi natureza-morta.
O desenho/pintura transita pela indecidibilidade fenomenal das coisas e uma percepção fluida medita atentamente a reversibilidade da experiência do mundo — dentro e fora. Resta perguntar se uma cidade que existe em meio a pedras e água também não está nesses desenhos.
Texto da exposição no Gabinete de Arte Raquel Arnaud, São Paulo, 2001.
No início eram pedras. No fim, também. Foram pedras os objetos de que Elizabeth Jobim partiu. E seus desenhos têm igualmente cara de pedra: arestas marcadas, alguma solidez, um aspecto quebradiço de coisas rígidas. E no entanto são planos como uma folha de papel. E o que interessa está justamente na passagem de um a outro. Ou seja: como ir de objetos sólidos e tridimensionais a desenhos que, como poucos, tiram o maior proveito de seus limites físicos? Falar de antiilusionismo, a esta altura, talvez já não sirva mais para nada. Porque, para encontrar suas alternativas, a artista precisou ir além disso. Precisou, a partir da estrita bidimensionalidade de seus desenhos, criar uma outra dimensão — distante tanto da impressão de profundidade proporcionada pelos meios perspectivos, quanto da pura planaridade moderna.
E penso que reside aí a originalidade dos desenhos de Elizabeth Jobim. Seus trabalhos se constroem com linhas. Não resta dúvida. Mas essas mesmas linhas têm uma largura pouco comum no desenho. E, paradoxalmente, a sua maior definição não conduz a uma solidificação das coisas que delineiam. Ao contrário, essas faixas de cor se mostram excessivas para circunscrever um sólido. E por serem excessivas, em vez de o regularizarem, desconjuntam-no. Tornam presentes demais todas as arestas que o compõem. E assim rebaixam sua solidez. Porque nada é sólido se não puser de lado as suas quinas, se mostrando sobretudo como matéria espessa, com uma densidade pouco afeita a limites. A largura desproporcional dessas linhas expõe a flacidez de coisas que, por serem pouco resistentes, precisam ganhar limites por demais austeros.
A prova disso se revela também nessas linhas. De tão largas, vão perdendo a regularidade, amolecem e… escorrem. E então surge uma outra figuração dos corpos. A sua consistência nasce dessa nova plasticidade: em lugar da ilusão de profundidade, a constituição de uma espessura que, de tão evidente, perde a rigidez e se torna esponjosa, mole. Como se vê, estamos diante (diante?) de um novo cubismo. Só que agora ele não mais se afirma pela capacidade de fornecer, simultaneamente, uma visão de todas as faces de um sólido. E sim pela criação de uma espécie de tridimensionalidade interna, que nesses desenhos se apresenta pela possibilidade de trazer à tona a consistência das coisas e, isso, paradoxalmente, pelo seu amolecimento. A instabilidade dessas formas nos remete a seres cuja definição não se encontra em seus planos externos, e sim na porosidade de sua constituição.
Naturezas-mortas sempre foram um índice de nossa capacidade de dispor o mundo[1]. Nelas, a realidade se deixava conformar a arranjos em que a acidentalidade da natureza era depurada por relações mais regulares, em que maçãs, potes e laranjas traziam a promessa de uma convivência harmoniosa, a mostrar a possibilidade de uma afeição universal entre os seres. Elizabeth Jobim volta a essa questão. Só que agora o mundo se revela excessivamente disposto a essa conjugação de diferenças. E aí penso que Philip Guston e Oldenburg são seus grandes precursores. Afinal, como lidar com pedras como se elas fossem massas esponjosas?
As obras moles de Oldenburg falam de um tempo em que a intervenção sobre o mundo alcançou tal potência que mais nada se põe de pé, pois tudo perdeu sua consistência natural, pelo avanço da tecnologia. Por sua vez, os desenhos e telas de Guston — sobretudo os realizados no final da década de 60 e nos anos 70 — mostravam um excesso de pintura que, em lugar da magnificar seus temas, os emporcalhava. A matéria que constituía os seres também impedia sua definição. Àquela altura, era a resposta possível do expressionismo abstrato à supremacia pop.
Elizabeth Jobim não quer reerguer o mundo, pô-lo em posição ereta. No entanto, ela dá um passo à frente em relação a Oldenburg e Guston. Seus trabalhos sugerem a existência de uma intimidade nos seres. A maleabilidade que os domina convida a desvendar seu interior, torna aparentemente orgânicas coisas que se resumiriam a uma exterioridade plena — pedras. E tudo isso para, ao fim, nos mostrar que essa interioridade tem a riqueza de um enchimento de colchão.
Mas, se nos detivéssemos aqui, passaríamos por cima de uma dimensão decisiva da obra da artista. Porque há mais que ironia nessas obras. Assim como seus desenhos vão além de um melancólico comentário sobre a impossibilidade do desenho, seu significado ultrapassa uma simples constatação da intranscendência contemporânea. A disponibilidade do mundo criado por Elizabeth Jobim procura encontrar alguma complexidade onde, a princípio, seria de se vislumbrar apenas pobreza. Um pouco à maneira de Beckett, seus trabalhos identificam uma certa grandeza nas astúcias e mazelas cotidianas. O jogo entre a banalidade da superfície do mundo e o mistério de seu sentido — a meu ver uma das questões que permeiam “Esperando Godot” — move essas naturezas-mortas. Afinal, não seriam das melhores produções da arte brasileira contemporânea se fossem simples renúncia. Como nas naturezas-mortas, tudo está a um passo de encontrar o lugar certo, a posição em que faremos todo sentido. Não fosse a suspeita de que então a própria noção de sentido se tornará inútil:
– O que vamos fazer agora?
– Esperar.
– Sim, mas enquanto esperamos?
– Que tal se a gente se enforcasse?[2]
Um pouco como nós todos, esses desenhos pedem compreensão e desacreditam dela. Fomos longe demais com os instrumentos da razão. Estão prontos a se adequarem a uma forma melhor, mas talvez saibam que tenha passado o tempo de dias melhores. São mansos e humildes de coração, mesmo que agora coração não seja mais que um músculo feito de estopa.
[1] Essa questão foi desenvolvida de maneira particularmente esclarecedora no artigo “Desenhos que desabam”, de Paulo Venancio Filho. Paço Imperial, Rio de Janeiro, 1998.
[2] Samuel Beckett. Esperando Godot. São Paulo, Abril Cultural, 1976, p. 25.
Texto da exposição na Galeria Raquel Arnaud, São Paulo , 2000.
As aquarelas e óleos de Elizabeth Jobim interrompem o curso de uma produção artística que já surge destinada ao planeta da estética. Entre cáusticos e líricos, desafiam a saturação contemporânea.
Sem recusar toda a magia das vanguardas, esses trabalhos hesitam em corresponder aos decretos modernos. Tampouco reivindicam originalidade. As telas olham o mundo. São registros de vivências múltiplas, traços de uma cultura indiferenciada. Convivem com a grande pintura e com imagens dos jornais.
Nada ali parece prometer silêncio. Sugerindo uma atmosfera barroca, de luminosidade quase religiosa, os olhos-paisagens exibem uma dramaticidade irritante, talvez só desfeita por sua ironia pop. Até mesmo as fluidas aquarelas, apresentando imagens tão banais, não deixam, afinal, de evocar a sordidez cotidiana.
Comover o espectador é um dos ardis desses trabalhos. Entretanto, o que cada obra demanda acaba por não recuperar para si, e esse movimento é o mais próprio à poética de Elizabeth Jobim.
Texto das exposições: Elizabeth Jobim: Pinturas na Galeria Parangolé, Brasília – 1994 / Elizabeth Jobim no Museu da República, Rio de Janeiro – 1993.
A virtude inicial dos desenhos de Elizabeth Jobim está no modo honesto e singular com que se dispõem a enfrentar o dilema contemporâneo – com a obrigação de incorporar a tradição moderna, cada vez mais densa e opressiva, produzir uma linguagem presente, que mantenha em aberto o campo dos possíveis. Daí o esquema algo didático, algo irônico, de estudos casuais: frente ao modelo há tanto o esforço positivo de assimilação dos valores plásticos ilusionistas quanto o distanciamento e a desintegração dos nexos da tradição. A começar por sua escolha quase aleatória, o modelo se oferece aqui a uma operação dupla: dominar a plástica do contorno e do volume e empreender uma discussão sobre o que podem ainda expressar linha, plano e forma. Em sintonia com a experiência cotidiana mais e mais dispersa, avessa a critérios e noções de unidade, o artista pratica a inteligência da ambigüidade da forma. O mesmo traço que capta e reproduz o modelo também o relativiza e fragmenta. Não por acaso, de fato, duas partes horizontais compõem o todo vertical do desenho. A reconstrução da figura – a luta para torná-la viva e convincente – é inseparável de decisões e contra-decisões expressivas no próprio momento de realização. Simultânea, incessantemente, o trabalho articula e desarticula unidades. E leva o olhar a uma hesitação recorrente entre o movimento de construção e desconstrução do modelo. Se não chega a definir e instituir unidades, a arte apenas cede ao processo de indiferenciação generalizado; se permanece escravo delas, no entanto, perde a vertigem do atual e engendra uma ordem arcaica. O “diálogo” entre artista e modelo acaba assim por exprimir o impasse da relação sujeito-e-objeto, esta estranha dualidade segundo todos os indícios insustentável mas que não se consegue finalmente ultrapassar.
À nova obra de arte cabe, portanto, apresentar consistência estética. A essa altura, nenhuma idiossincrasia, nenhum escândalo iconoclasta, pode salvá-la da banalidade pura e simples. De um modo ou de outro, ela se apóia na espessura, na trama complexa e problemática da tradição moderna. Mas ao se isolar nesse contexto como momento de arte, o risco é neutralizar-se enquanto momento de vida. Por isto, a meu ver, tais desenhos oscilam entre a conquista de plena individualidade e a condição de partes móveis de uma série. Sintomaticamente também o termo série oscila aqui entre o sentido morfológico e a acepção conceitual. O raciocínio serial minimalista investia, como se sabe, numa outra modalidade de novo – o novo por repetição, irredutível aos parâmetros da identidade clássica. Seguindo a estrutura abstrata do real contemporâneo, a experiência de séries substituiria o contato fisico de coisas e objetos dados. Um mundo-em-processo demandaria uma arte na qual só o gesto mínimo, dotado de economia máxima, escaparia ao obsoleto modelo demiúrgico de criação. Já as tendências recentes ditas neo-expressionistas buscaram exibir, através de uma mecânica de pintura cerrada e aflita, só aparentemente gratuita e espontânea, o insuspeitado informalismo das séries. O novo continuum eletrônico solicita enfim um gesto paradoxal, relâmpago e reflexivo, como condição mesma de sobrevivência dentro dessa verdadeira selva quântica.
Os “estudos” de Elizabeth Jobim seriam assim compulsoriamente temáticos, reabilitando a disciplina da cópia de museu, e intempestivos, registros pessoais mais ou menos passageiros; repetições acadêmicas, pedagógicas, e repetições reflexivas quase sisteméticas. Tomados inocentemente por transes, logo afirmam sua dimensão pensada e distanciada; analisados como estratégias de desconstrução acusam prontamente o caráter de improviso, assumem a incerteza básica do presente. E a referência direta à História da Arte revela mesmo um toque de astúcia: uma vez explícita, permite o trânsito franco e desinibido. E isso vale também para as suas empatias imediatas. Claro, sempre sera possível reconhecer de Kooning, por exemplo. Ao nível abstrato da formação do traço, porém, as marcas decisivas talvez sejam as de Iberê Camargo e Tunga. A própria disparidade de influências, no caso, depõe a favor de um projeto, digamos, essencialmente tentativo. Ao virtuosismo de Iberê – cujo brilho estético sublima e redime o trágico que tão urgentemente anuncia – se mistura a inteligência dúbia de certos desenhos de Tunga nos quais uma quase escrita repetitiva, falsamente expressiva, arma em sentido literal cenas eróticas. A singularidade do Eu insiste, apesar de tudo, em comparecer ainda que para assinalar exatamente o “estilo” de sua desagregação. Contudo, a pressão da história, o desencanto progressivo com a institucionalização brutal e o conseqüente esvaziamento da revolução moderna, impõe o regime da desconfiança crônica – o traço que se pretendia soberano aprende a se interrogar, a observar seus padrões e obsessões, a cultivar uma dúvida sobre a sua pureza expressiva.
Presos entre pólos opostos, a força particular dos desenhos recentes de Elizabeth Jobim consiste justamente em fluir. E, no limite, quem sabe, propor a leitura do real enquanto estruturas fluidas. Semelhantes estruturas exigiriam por princípio uma apreensão plástica, capaz de acompanhá-las em meio a suas constantes alterações; pronta necessariamente a resistir e a incorporar tensões e traumas sucessivos; mas pronta enfim para seguir fluindo.
Texto da exposição Elizabeth Jobim: Desenhos na Galeria Paulo Klabin, Rio de Janeiro, 1988. Publicado em: Experiência Crítica – Editora Cosac & Naify, São Paulo, 2005.
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