raul diaz reyes_ vocabulario para fixar vertigens
15 jun - 17 ago_2019
A cor das vogais
“Inventei a cor das vogais! – A negro, E branco, I rubro, O azul, U verde. Regulei a forma e o movimento de cada consoante, e, com ritmos instintivos, me vangloriava de inventar um verbo poético acessível, mais dia menos dia, a todos os sentidos. Eu me reservava à tradução. A princípio, era apenas um estudo. Escrevia silêncios, noites, anotava o inexprimível. Fixava vertigens.” Arthur Rimbaud[1]
Raúl Díaz Reyes preenche as quatro paredes da sala de exposição com um alfabeto de cores e formas. Em sua segunda individual em São Paulo, o artista espanhol espalha pelo espaço pequenos elementos bidimensionais de acrílico. Em grande parte geométricas, as peças azuis, pretas e vermelhas não são letras propriamente ditas. Nascem do encontro de formas puras, triângulos, círculos e quadrados, em um processo de adição, recorte e subtração que dá origem a novas configurações. Outras delas são mais espontâneas e gestuais. Juntas, constituem um vocabulário de signos que, por vezes, remetem a desenhos conhecidos e rapidamente identificáveis, próximos a ícones e logos, ao universo urbano e à publicidade.
Acompanhadas de seus supostos “moldes”, à primeira vista parece que as peças acabaram de conquistar sua liberdade, ainda de maneira tímida e lenta. Os moldes – chapas acrílicas recortadas, emolduradas e sustentadas por estruturas retangulares de ferro pintado – lembram aquelas réguas vazadas, com tipologias de formas simples, com as quais é possível esboçar árvores, aviões ou até ondas do mar. Lembram, também, réguas de arquiteto, utilizadas para construir desenhos técnicos, menos lúdicos, que respondem a uma funcionalidade e a uma lógica da pré-fabricação. No entanto, contrariando a primeira impressão, as figuras soltas e menores não encaixam nos vazios dos moldes, o que indica que na realidade as peças maiores não funcionaram como matrizes de produção. Esta desconexão é o primeiro sinal, ou a primeira pista, do rompimento de uma ordem e da entropia sugerida pelo artista.
Cortados a laser, os elementos acrílicos aludem à produção industrial. Seus cantos são vivos, sua matéria é fria e sua superfície, delicada. O trabalho manual parece distante. Ainda assim, está claro o diálogo com a experimentação das vanguardas históricas, com a abstração geométrica, com o construtivismo, com o concretismo e o neoconcretismo. Como o poema tipográfico de Mallarmé, “Un coup de dés jamais n’abolira le hasard” (1897)[2], que explorou as possiblidades da tecnologia de impressão e do vazio da página, as peças de Raúl utilizam a parede como folha em branco. As figuras recortadas grudam-se à arquitetura e definem o ritmo de leitura e as pausas da obra. Agrupadas de maneira livre, as peças estabelecem entre si jogos de equilíbrio de pesos que fogem a uma regra fixa, a um só padrão ou grid. O conjunto possui movimento e desenha no espaço uma partitura realizada com uma notação musical alternativa, um poema visual ou uma paisagem. Não parece fácil decifrar seu significado ou suas leis de construção. A leitura da instalação transita entre o visual, o coreográfico, o arquitetônico e, apesar do silêncio, o sonoro.
Num texto de 1965, “Between Poetry And Painting”[3], o monge beneditino e poeta visual Dom Sylvester Houédard utiliza os termos “logos” e “ícone” para referir-se de um modo mais amplo à “palavra” e à “pintura”. Ao construir uma cronologia histórica das relações entre os dois conceitos, desde os artefatos primitivos até os anos 1960, o monge propõe termos como “quase-pintura”, “quase-palavra” ou mesmo “quase-letra”. Com a utilização dessa terminologia para designar propostas abertas e em permanente redefinição, Dom Sylvester abala a natureza e a existência das “palavras” e da “pintura” enquanto matérias estanques, propondo zonas de circulação livre e a não separação entre texto e imagem, entre poesia e pintura, entre “logos” e “ícones”[4].
As peças de Raúl encontram-se neste terreno, “entre”. São quase-pinturas, quase-palavras ou quase-letras que sintetizam e materializam signos presentes na cultura visual contemporânea, na sinalética das cidades e na história da arte. Nesta obra, cruzam-se referências ou contaminações sem citações explícitas e específicas de distintas épocas e procedências. Da produção do designer gráfico e cineasta norte-americano Saul Bass, famoso pelas aberturas de filmes como “Vertigo”, de Alfred Hitchcock, à coreografia geométrica do “Ballet Triádico” de Oskar Schlemmer, do início do século XX.
Alguns dos elementos da instalação lembram ainda a iconografia totêmica de Rubem Valentim, que a partir dos anos 1950 se apropria da linguagem da abstração geométrica para construir complexas composições que redesenham e reconfiguram símbolos, emblemas e referências afro-atlânticos. Por fim, é fundamental referir-se a Lygia Pape, ao seu Ballet Neoconcreto, concebido em 1958 em parceria com o poeta Reynaldo Jardim, e, principalmente, à trilogia de livros que a artista produziu no fim dos anos 1950, início dos anos 1960, Livro da Criação, Livro da Arquitetura e Livro do Tempo.
Lygia transcendeu o distanciamento formal do concretismo, chamando atenção para a dimensão social da arte e sugerindo a interação entre arte e público. Raúl também questiona ordens preestabelecidas e propõe processos de rearticulação, reconfiguração e metamorfose que acontecem diante do espectador. Assim como Rimbaud, inventa um vocabulário próprio para fixar vertigens.
Isabella Lenzi
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[1] Rimbaud, Arthur. “Une saison en enfer. Délires II. Alchimie du verbe”, 1873.
[2] Em português: “Um lance de dados jamais abolirá o acaso”.
[3] Houédard, Dom Sylvester. “Between Poetry And Painting”. London, ICA -Institute of Contemporary Art, 1965.
[4] Agradeço a Tomás Cunha Ferreira pela referência bibliográfica e pelas ideias sobre o texto.