carla chaim_ febre
6 nov 2021 - 29 jan_ 2022
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“(…) No gesto, cada corpo, uma vez liberado de
sua relação voluntária com um fim, seja orgânico ou social,
pode, pela primeira vez, explorar, sondar e mostrar
todas as possibilidades de que é capaz.”
Giorgio Agamben
Engana-se quem espera encontrar abrigo nesta arquitetura. De início, há uma caixa dentro de outra caixa; um grid de madeira no centro da galeria. A estrutura vazada nos convida a contemplar desenhos suspensos, percorrer o dentro e o fora, a frente e o verso. Tudo parece em seu lugar, até que nos aproximamos das obras. Daí, a aparente rigidez do espaço encontra as manifestações de um corpo inquieto, febril. Percorremos riscos enérgicos e repetitivos, densidades matéricas, arranhões, tapas, explosões e estilhaços: nenhum traço de consolação, nenhuma redenção.
Febre é uma exposição que ronda as potências reflexivas do gesto. Liberadas de qualquer funcionalidade, as ações de Carla Chaim exploram as rebeliões e levantes que cabem num só corpo. Se a artista costuma ser majoritariamente identificada pela paleta concisa centrada no preto e branco (escolha que exerce o papel de manter a produção vinculada às suas operações fundamentais, despida de acessórios), aqui acompanhamos um forte interesse pelo vermelho e suas variações, fruto da busca por uma nova radicalidade e um alargamento dos contornos subjetivos. Não se trata, porém, de compreender seu gesto enquanto fetiche expressionista, via pela qual seríamos convocados a perseguir traços de singularidade psicológica em sua produção. Também não nos cabe identificar em seus rabiscos uma marca autoral que se aproxime das ideias de estilo, personalidade e distinção; a ideia de gesto como assinatura, por exemplo. Na via contrária, os riscos que vemos aqui buscam certa desterritorialização — não documentam a biografia de um sujeito, mas os tremores e vibrações que atravessam seu corpo, a energia de seus movimentos repetidos à exaustão, tais quais exclamações visuais que podem ser compartilhadas também em nível coletivo (produzida nos últimos dois anos, é possível dizer que esta exposição também corresponde em maior ou menor grau ao estado de estresse social que atravessamos).
Em quase todos os trabalhos aqui presentes, tal corpo se manifesta pelo seu caráter indicial, isto é, anuncia uma presença constituída através de uma ausência. São desenhos-cicatrizes que apontam a perspectiva de que um corpo não é feito só de carne e osso, nem mesmo só de matéria. Trata-se de um misto de máquina errante e instrumento, prótese e laboratório de experimentação — campo de batalha por excelência. O corpo de Febre é um corpo inscrito. Duas exceções, no entanto, são “Mão dormindo” (2021) e “Conversa-Acordo” (2021), vídeos nos quais as mãos adquirem uma animalidade própria, como se existissem de modo independente do resto do corpo. No primeiro, os gestos mínimos do membro que repousa nos fazem imaginá-lo situado logo no momento após a execução das obras: eis uma mão exausta de produzir. No segundo, o diálogo íntimo entre as mãos (que ora soa como conflito, ora como jogo de sedução) divide o corpo de um mesmo sujeito. Segundo a própria artista, “quando duas mãos se tocam, qual é tocada e qual toca? Quem é o sujeito e objeto em cena?”.
A condição de duplo que está presente em “Conversa-Acordo” também se faz visível em outros momentos da mostra. Os carbonos arranhados com as unhas apresentam polos espelhados — positivo e negativo, matriz e cópia — no reconhecimento de si próprios como um outro. O mesmo acontece com os “bordados” riscados simultaneamente com as mãos esquerda e direita, que produzem manchas heterogêneas de difícil conciliação (nesses casos, a cólera é mais contida e concentrada, como numa gradação rítmica coreografada). O duplo atua enquanto solução dialética que desorienta e perturba a suposta razão do procedimento, algo que fica ainda mais acentuado com a repetição e a insistência. Longe de refletir qualquer padronização, os gestos reincidentes de Chaim distanciam-se da ideia de êxito e eficácia de um programa possível para afirmarem a crueza própria do fracasso. A falha situa-se como recusa, impostura e impossibilidade, mas também saída propositiva e recurso inventivo. Repetir, aqui, é um modo de esgarçar o gesto até que seja possível finalmente vê-lo, agarrá-lo.
Há ainda um conjunto de cerâmicas com grafite que parece migrar os riscos que vemos nos papéis japoneses para a tridimensionalidade do espaço. São linhas igualmente irregulares que sugerem fragmentos orgânicos retorcidos e reduzidos a sua essência. Como em trabalhos anteriores da artista, o grafite deixa de ser o meio pelo qual algo se expressa para ser fim em si mesmo, matéria de interesse autônomo. Além disso, algumas dessas peças, de curvatura mais acentuada, mencionam a forma do corpo histérico de Louise Bourgeois, aproximando forma e sintoma.
Por fim, compreendo essa Febre que Chaim nos endereça como uma espécie de reação ao estado de dormência que nos acomete no presente. Aqui, imersos nos delírios das altas temperaturas, estamos convocados a recuperar a gestualidade, na busca por performar e exercer nossas pulsões vitais. Alguma febre, sim, para não nos assujeitarmos ao fracasso ininterrupto do agora. Alguma febre, sim, que seja capaz de garantir a insurreição dos nossos sonhos.
Pollyana Quintella
Exposição: Febre
De 06 de novembro a 29 de janeiro de 2022
Telefone 11. 3083-6322, e-mail info@raquelarnaud.com
Galeria Raquel Arnaud
Rua Fidalga, 125 – Vila Madalena