a revolução tem que ser feita pouco a pouco_ parte 4: a revolução
27 out - 21 dez _ 2012
(uma exposição em quatro etapas)
No seu Guia prático para o desvio, Guy Debord argumentava que uma das mais eficazes estratégias de insubordinação social seria a apropriação, ou desvio, de frases e conceitos alheios, para fins revolucionários. Debord identificava vários tipos de desvios, entre eles o desvio menor, em que as palavras ou frases apropriadas não possuem importância própria, mas a adquirem em virtude do novo contexto onde são utilizadas, e principalmente o desvio enganador, em que o conceito apropriado é intrinsecamente significativo, mas toma uma dimensão e um valor diferentes no seu novo contexto. A frase que dá nome à exposição pertence, evidentemente, a essa segunda tipologia: retirada de uma entrevista recente de Paulo Mendes da Rocha, no seu contexto originário referia-se à necessidade de uma revolução nas metodologias da construção civil e, metonimicamente, na cidade e na sociedade como um todo. No novo contexto, a frase mantém seu fascínio, mas adquire outros significados, sugerindo, em primeiro lugar, a necessidade, para uma galeria de arte, de transformar-se constantemente, acompanhando as mudanças incessantes da produção artística e (aqui também poder-se-ia falar em metonímia, ou até em premonição) da sociedade. Evidentemente, quanto maior e mais prestigiosa a história da galeria, mais premente e árdua torna-se essa tarefa…
A revolução, diz o arquiteto, tem que ser feita pouco a pouco. As obras aqui reunidas, num primeiro momento organizadas em conjuntos menores e conceitualmente mais coesos, e finalmente rearranjadas com base em outros critérios na reprise final, sugerem de fato uma revolução prolongada, das que não entram nos livros de história, talvez nem nos livros de história da arte, pela simples razão que não começam e não terminam, apenas acontecem. E de fato, a escolha dos temas das três primeiras etapas da exposição responde exatamente ao desejo de olhar, de pontos de vista distintos mas complementares, um mesmo universo. Não é por acaso, aliás, que a maioria das obras poderia encaixar-se perfeitamente em mais de um destes marcos curatoriais: a revolução é magmática, fluida, feita rio que nunca é o mesmo, e que, contudo, não muda nunca. A decisão de dividir a exposição em etapas responde, entretanto, ao desejo de desvencilhar-se das convenções, como a que dita, para uma galeria, a necessidade de expor apenas ‘seus’ artistas, ou de não repetir a mesma obra em duas exposições seguidas, ou mesmo de não tentar construir uma narrativa que ouse expandir-se para além das poucas semanas de duração de uma mostra convencional. Desvencilhar-se, enfim, dos preconceitos que poderiam impedir a revolução, o primeiro dos quais, naturalmente, é a convenção de que uma revolução tem que ser rápida, surpreendente e violenta, quando na verdade ela precisa acontecer aos poucos, tomar o tempo que for preciso, ocupar e mudar o mundo enquanto ninguém olha.
parte 4.
A revolução
O momento culminante e triunfal da revolução, em que os insurgentes tomam o poder e instauram uma nova ordem, é, fatalmente, também o do fracasso mais evidente e inegável, o instante em que o movimento para, e o que antes era aspiração a ruptura e mudança torna-se desejo de manutenção do novo status quo, subvertendo a própria razão de ser da revolução. Análoga e conscientemente, a última etapa deste projeto expositivo constitui ao mesmo tempo a culminação e a negação das premissas colocadas ao longo das três primeiras instalações: o observador é convidado a esquecer tudo que já viu, a formular novas interpretações para as obras que já foi instado a ler de acordo com o tema de cada etapa. Na exposição anterior a esta, por exemplo, as impressões de Runo Lagomarsino exemplificavam a maneira como um artista pode delegar ao imponderável o aspecto de uma obra, já aqui elas participam de uma reflexão sobre o tempo, ao lado das Polaroids de Haris Epaminonda e das esculturas de Carlos Fajardo e Nuno Sousa Vieira, todos trabalhos em que a questão das mudanças que o tempo traz, seja nas imagens reproduzidas, nos materiais utilizados ou na memória do próprio artista, é central. E a videoinstalação de Felix Gmelin, Farbtest, Die Rote Fahne II, que na etapa inicial do projeto introduzia a questão da diferença na repetição, pode ser lida aqui, ao lado da clássica Experiência Mondrian, de Waltercio Caldas, e do vídeo de Lisa Tan, Sunset, como um rigoroso exercício sobre a tradução, ou melhor, sobre a impossibilidade de traduzir sem dizer algo além do que o original dizia. E ainda, ao aproximar o Pneu com círculo de pedras paulistas, de Francesco Arena, às esculturas de Sergio Camargo e às impressões de mãos ao trabalho, garimpadas por Mabe Bethônico no clássico De Re Metallica (1556), a ênfase, que já esteve na relação entre a durabilidade da pedra e o rápido desgaste do pneu, passa a estar no valor ético do trabalho manual. Os exemplos poderiam multiplicar-se, as aproximações e reverberações possíveis são quase infinitas: a exposição, com todas as suas etapas e desdobramentos, torna-se um hipertexto rizomático e inesgotável, fadado a existir sempre mais em potência do que em ato. E de fato, o trabalho de Runo Lagomarsino, com a frase singela e explícita We Support, pede, além ou antes de tudo, uma interpretação política, da mesma forma como a pedem Farbtest, Die Rote Fahne II, ou a lápide sem título de Francesco Arena, monumento irônico e críptico aos membros brasileiros da P2. Mas a exposição abertamente política permanece, como se dizia, em potência, latente, à espera de uma oportunidade, ao lado de inúmeras outras. Ela não foi montada aqui, e não o será.
Se não existe uma única exposição, nem duas, mas tantas quantas cabe imaginar a partir das obras, e das relações que as obras estabelecem entre si, também é possível supor que a revolução sugerida por este projeto sejam, então, pelo menos duas. A primeira, explícita desde o princípio, consistiu em experimentar, na programação de uma galeria, recursos pouco ou nada comerciais, como expor artistas não representados e obras que não estavam à venda. Trata-se, evidentemente, de estratégias bastante difundidas, mas potencializadas, aqui, pelo fato de a exposição ser dividida em quatro momentos sucessivos, ao longo dos quais vários dos artistas e das obras repetiram-se. Pouco a pouco, porém, como convém a algumas revoluções, os visitantes que puderam ver todas as etapas da mostra terão talvez percebido que o que estava realmente sendo testado, mediante um exercício de curadoria raro, pela liberdade com que pôde ser levado a cabo, eram os próprios limites do formato exposição. Já houve, e certamente haverá, experiências mais radicais e ousadas no questionamento desse formato, e é exatamente por isso que o que foi testado aqui é válido, porque não daria para fazer de maneira mais simples, clara e compreensível. Tudo que é preciso, para entender, é um pouco de atenção, ou de A-tensão, citando o trabalho de Carlos Zilio que, não por acaso, está colocado no início da exposição, como uma epígrafe. A atenção necessária para perceber que a exposição que estamos vendo é uma construção real e tangível, e contudo limitada, no sentido de que o que mais importa é o que fica implícito, isto é, o convite para o imprescindível exercício de imaginar algumas das outras combinações possíveis, as montagens que não foram feitas, as interpretações que não afloraram, o que ficou não dito. É, enfim, o convite para se colocar no papel de quem pensa, testa, erra e volta a tentar, sem parar, nem por um instante, de criticar o que está vendo, e o que está lendo.
Jacopo Crivelli Visconti