a revolução tem que ser feita pouco a pouco | parte 2: a quadratura do círculo
07 jul - 18 ago_ 2012
(uma exposição em quatro etapas)
Carla Chaim
Célia Euvaldo
Felix Gmelin
Francesco Arena
Nuno Souza Vieira
No seu Guia prático para o desvio, Guy Debord argumentava que uma das mais eficazes estratégias de insubordinação social seria a apropriação, ou desvio, de frases e conceitos alheios, para fins revolucionários. Debord identificava vários tipos de desvios, entre eles o desvio menor, em que as palavras ou frases apropriadas não possuem importância própria, mas a adquirem em virtude do novo contexto onde são utilizadas, e principalmente o desvio enganador, em que o conceito apropriado é intrinsecamente significativo, mas toma uma dimensão e um valor diferentes no seu novo contexto. A frase que dá nome à exposição pertence, evidentemente, a essa segunda tipologia: retirada de uma entrevista recente de Paulo Mendes da Rocha, no seu contexto originário referia-se à necessidade de uma revolução nas metodologias da construção civil e, metonimicamente, na cidade e na sociedade como um todo. No novo contexto, a frase mantém seu fascínio, mas adquire outros significados, sugerindo, em primeiro lugar, a necessidade, para uma galeria de arte, de transformar-se constantemente, acompanhando as mudanças incessantes da produção artística e (aqui também poder-se-ia falar em metonímia, ou até em premonição) da sociedade. Evidentemente, quanto maior e mais prestigiosa a história da galeria, mais premente e árdua torna-se essa tarefa…
A revolução, diz o arquiteto, tem que ser feita pouco a pouco. As obras aqui reunidas, num primeiro momento organizadas em conjuntos menores e conceitualmente mais coesos, e finalmente rearranjadas com base em outros critérios na reprise final, sugerem de fato uma revolução prolongada, das que não entram nos livros de história, talvez nem nos livros de história da arte, pela simples razão de que não começam e não terminam, apenas acontecem. E de fato, a escolha dos temas das três primeiras etapas da exposição responde exatamente ao desejo de olhar, de pontos de vista distintos mas complementares, um mesmo universo. Não é por acaso, aliás, que a maioria das obras poderia encaixar-se perfeitamente em mais de um destes marcos curatoriais: a revolução é magmática, fluida, feita rio que nunca é o mesmo, e que, contudo, não muda nunca. A decisão de dividir a exposição em etapas responde, entretanto, ao desejo de desvencilhar-se das convenções, como a que dita, para uma galeria, a necessidade de expor apenas ‘seus’ artistas, ou de não repetir a mesma obra em duas exposições seguidas, ou mesmo de não tentar construir uma narrativa que ouse expandir-se para além das poucas semanas de duração de uma mostra convencional. Desvencilhar-se, enfim, dos preconceitos que poderiam impedir a revolução, o primeiro dos quais, naturalmente, é a convenção de que uma revolução tem que ser rápida, surpreendente e violenta, quando na verdade ela precisa acontecer aos poucos, tomar o tempo que for preciso, ocupar e mudar o mundo enquanto ninguém olha.
parte 2.
A quadratura do círculo
Os geômetras gregos foram os primeiros a confrontar-se com a impossibilidade de “quadrar” o círculo, isto é, de construir um quadrado com a mesma área de um dado círculo, utilizando-se apenas de uma régua e um compasso. A princípio, os termos do problema poderiam parecer singelos: toma-se a área do círculo, calcula-se o comprimento do lado do quadrado, chega-se à mesma área. Mas a conta não fecha, como se as medidas do círculo, acostumadas a conviver com a sua curva infinita, não aceitassem a transformação em algo tão rígido e inflexível como um quadrado. Olhando de longe, sem régua e sem compasso, o que fascina nesse problema é a leitura metafórica que ele sugere, a ideia de um diálogo inconcluso, fatalmente aproximativo, fadado a uma eterna abertura, entre o ângulo reto e o círculo que a ele se opõe. A história da arte, que tão frequentemente aproximou-se à da geometria, alimentou-se há vários séculos de embates análogos, aparentemente paradoxais, e contudo extremamente férteis. Segundo a célebre definição de Charles Baudelaire (em O pintor da vida moderna), por exemplo, “a modernidade é o transitório, o fugitivo, o contingente, a metade da arte, cuja outra metade é o eterno e o imutável”. Fundir o transitório com o eterno, o que é contingente, efêmero, íntimo, único e pessoal, com o que é eterno, público e universal, é o desafio impossível, a quadratura do círculo proposta pelas obras que integram a segunda parte da exposição A revolução tem que ser feita pouco a pouco. O ponto de partida, aqui, é sempre uma situação, um evento ou um dado acessório ou pessoal, na maioria das vezes aparentemente insignificante, mas que, ao ser incorporado à obra, torna-se “eterno e imutável”.
Francesco Arena, por exemplo, usa uma lápide para imortalizar os nomes de todos os membros brasileiros da loja maçônica italiana P2 [Propaganda Dois], que nos anos 1960 e 1970 controlou, de maneira oculta e ilegal, mas extremamente eficaz, a vida política italiana. O valor supostamente celebrativo da lápide é, contudo, apenas ilusório, a obra torna-se um gesto de escárnio: as letras de cada um dos nomes estão aí, mas embaralhadas, e os nomes ficam escondidos, esquecidos num texto delirante e que não fala deles, e que portanto, ao invés de preservar, parece esforçar-se para apagar essa memória. Nuno Sousa Vieira, por sua vez, apresenta novos desdobramentos da série de trabalhos feitos a partir do próprio lugar de trabalho, um armazém onde funcionou a fábrica para a qual o pai do artista trabalhou por vários anos, e de onde ele retira a matéria-prima para suas esculturas. O desenho realizado por Carla Chaim na parede da galeria, efêmero e contudo imortalizado em vídeo, é um espelho que reflete o corpo da artista: o diâmetro do círculo, e portanto o tamanho da obra, não poderiam ser outros, o dado aparentemente acessório das medidas da artista é o que a faz ser exatamente assim e, em última instância, a torna eterna. E o que a leva a dialogar, ao longo do tempo, com uma série de obras sobre papel realizadas por Célia Euvaldo há mais de vinte anos, cujas formas também eram definidas pela extensão do braço da artista, isto é, pelo gesto que o seu corpo permitia. Finalmente, é ao longo do tempo que se dá, também, o diálogo instaurado pela obra de Felix Gmelin, cujas pinturas tentam capturar, na tela, a essência de um enigmático vídeo realizado por seu pai muitos anos antes. Herdado e descoberto pelo artista após a morte do pai, o vídeo sugere uma relação com a história da pintura, e também da moda, mas trata, em primeiro lugar, da relação de um filho com o pai, tema invisível e submerso de outras obras do artista alemão, como Farbtest, Die Rote Fahne II, que integrava a primeira parte desta exposição.
Jacopo Crivelli Visconti