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Biografia

são felipe_bahia_1953. vive e trabalha em salvador_bahia

O trabalho de Almandrade invoca o construtivismo, o minimalismo, o letrismo e o conceitualismo, pelo movimento de Poesia Concreta e sobretudo pelo Poema/Processo. Sua produção culmina em peças que relacionam modos de expressão literária-artística presentes desde os poemas visuais – publicados e expostos a partir dos anos 1970, onde encontrou na diversidade de suportes a possibilidade de ampliação da linguagem – até as pinturas e peças escultóricas em escalas maiores e mais recentes. Nas palavras de Décio Pignatari, amigo de Almandrade: “A linguagem poética difere da linguagem que utilizamos para a comunicação diária. Cada poeta explora a linguagem na busca de um acontecimento inesperado, de uma experiência singular”.

Antonio Luiz Morais de Andrade, cujo pseudônimo é Almandrade, é artista plástico, arquiteto, mestre em desenho urbano, poeta e professor de teoria da arte das oficinas de arte do MAM da Bahia e do Palacete das Artes. Participou de várias mostras coletivas, entre elas: três edições da Bienal de São Paulo (1973, 1975 e 1981), II Salão Paulista, I Exposição Internacional de Esculturas Efêmeras (CE), I Salão Baiano e II Salão Nacional. Obteve menção honrosa no I Salão Estudantil, em 1972. Integrou coletivas de poemas visuais, multimeios e projetos de instalações no Brasil e exterior.

Suas obras estão presentes em acervos de importantes instituições, entre elas: MAM da Bahia, Museu Nacional de Belas Artes (RJ), Museu de Arte do Rio de Janeiro, Pinacoteca Municipal de São Paulo, Museu Afro Brasil (SP), Museu Nacional de Brasília, Museu da Cidade (Salvador), Museu de Arte do Rio Grande do Sul, MAC do Rio Grande do Sul, Museu de Arte Moderna Aloisio Magalhães (PE), Museu de Arte Abraham Palatnik (RN), Museu de Arte Contemporânea de Feira de Santana (BA), MAM de São Paulo e Fundação Vera Chaves Barcelos (RS), entre acervos particulares e públicos.

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Textos

A arte contemporânea brasileira foi em parte consolidada por alguns caminhos auspiciosos que lograram um lugar político e estético especial para a nossa produção cultural: a resistência de uma poesia visual que transitou também para a canção popular e a obra plástica, a consolidação de uma tradição construtiva e concreta em meados do século XX e a experiência de uma arquitetura moderna de vanguarda que lançou ao mundo um olhar sobre patrimônio material, construção e urbanização.

A vasta, leve e precisa produção artística e literária de Almandrade (São Felipe, BA, 1953) é fruto desse amálgama de caminhos. Por isso, não nos cabe o ímpeto de classificá-lo. Entretanto, é saudável encontrar algumas âncoras históricas, geopolíticas e estéticas que ajudaram a construir uma vizinhança poética para a sua atuação. Por um lado, podemos associá-lo aos nomes proeminentes de nossa arte neoconcreta e conceitual e de nossa poesia concreta e visual; por outro, há também sentidos alargados e vizinhanças com nomes que vieram de outras partes do Brasil, fora do protagonismo do eixo Rio–São Paulo. Se puxarmos o fio da meada, enxergamos aproximações possíveis com a obra de notáveis, como: o cearense Sérvulo Esmeraldo; os pernambucanos Montez Magno, Daniel Santiago e Paulo Bruscky; o paraibano Raul Córdula; e mesmo os cariocas Wlademir Dias-Pino, Neide Sá e Álvaro de Sá; além dos paulistas Ridyas e Regina Silveira.

De modo geral, essas aproximações acontecem por uma identificação das geometrias e poemas visuais que nascem de uma prática experimental realizada sobre o plano do papel ou da tela. Por conseguinte, há também a progressão espacial da prática artística para a tridimensionalidade em que corte e dobra, forma e cor atuam e ativam o campo semântico da escultura. Nesse caminho para o espaço construído, em suas mais variadas escalas, não há como não o associar ao neoconcretismo carioca, do final dos anos 1950, ou mesmo à Escola Brasil, que floresceu em São Paulo nos anos 1970. A aproximação a esse repertório poético da história da arte e da poesia no país risca e demarca um lugar simbólico ao Almandrade, muito além do contexto vanguardista de Salvador (BA).

Em sobrevoo, é possível identificar um momento essencial da cultura brasileira no qual o artista deu os seus primeiros passos: os anos de chumbo (1968-1974) da ditadura civil-militar brasileira. Foi nesse período de sombra que sua arte silenciosa foi gestada, oferecendo, não sem humor, analogias possíveis à vida política e afetiva. Entretanto, a obra de Almandrade, em toda sua inteireza, não deve ser percebida como consequente apenas de um tempo cronológico, por um encadeamento linear de uma produção que vai superando a anterior e, assim, subsequentemente. Em seus já 50 anos de trajetória, há, sim, uma linha conceitual e plástica coerente que conduz sua produção cotidiana: uma experimentação permanente em que triangulam as formas do traço, da letra e da matéria.

Na exposição, por exemplo, o arco temporal das obras selecionadas, de 1973 a 2021, nos deixa ver uma persistência de pensamento e uma clareza formal, o que nos permite transitar pelo tempo dessa arte de maneira mais solta, desatrelado à correspondência do que o meio glorifica de tempos em tempos. Isso, talvez, tenha relação com a razão metafísica das obras do artista, em que seus signos assumem novas pertinências, à medida em que os objetos e telas são observados e percebidos por quem os ativa, trazendo sua arte para a conjugação do presente.

Uma chave de leitura que me parece pertinente está na proximidade com a linguagem conceitual e gráfica da arquitetura, uma espécie de existência desveladora de espaços. Trata-se de uma tradução que eu gostaria de chamar de “quase-arquitetura”: um fazer poético que parece tangenciar as razões da própria arquitetura como teoria e práxis, um quase existir arquitetônico. Tal percepção é dada ao observarmos os recursos gráficos de representação, as composições e, por consequência, as sugestões espaciais que são ali traçadas.

Muitos dos desenhos e pinturas emulam uma vista de topo, um voo rasante sobre uma área imaginada. São como plantas arquitetônicas que compõem uma estrutura – algo que é, em um só tempo, espaço representado e poema escrito. A dança compositiva das letras na formulação de palavras e o arranjo gráfico de riscos em nanquim ou acrílica promovem esse lugar simbólico exclusivo da obra de arte. São lugares capazes de abordar situações dialógicas que advêm da arquitetura representada: o dentro e o fora, o privado e o público, a luz e a sombra, o fechado e o aberto, etc.

Entre os conceitos que a fortuna crítica nos logrou acerca da obra do artista baiano, é a ideia de “nudismo abstrato” – dada pelo escritor e artista Décio Pignatari – que parece caber como uma luva. Se a obra é poema ou objeto, se é escultura ou arquitetura, não sabemos. Todavia, como indicou o crítico, percebemos a existência de trabalhos compostos “segundo uma grafia de cartilha, porém enganosamente sig-nificada e simplista, posto que metafísica”.

Assim, por intermédio das obras arranjadas no espaço da galeria, está qualificado o enigma poético e arquitetônico de Almandrade, que nos concede em suas múltiplas composições a existência de “meteoritos geométricos do pensamento”[1].

 

Diego Matos, entre janeiro e fevereiro de 2023.

 

[1] As citações nos dois últimos parágrafos provêm do ensaio de Décio Pignatari (1927-2012), intitulado “A persistência do nudismo abstrato: os objetos franciscanamente contundentes de Almandrade” (2006).

Pensei em elementarismo, despojamento, abecedarismo geométricos mas acabei por optar pela idéia do nudismo abstrato, para tentar caracterizar a postura e a impostação de Almandrade ante suas criações  e criaturas sígnicas que hesitam entre a bi e a tridimensionalidade, em duas ou três cores, em duas ou três texturas.

A parcimônia desses objetos franciscanamente contundente, desenhados, signados (designed), compostos segundo uma grafia de cartilha, porém enganosamente sig-nificada e simplista, posto que metafísica.

Criam um campo significante que parece rechaçar instruções extratexto, mesmo quando inclui algum elemento metafórico in memorian Dadá.

Meteoritos geométricos do pensamento, taquigrafia precisa de uma claríssima visão cuja totalidade se ofuscou, indício e impressão minimal de um evento artístico-mental; ocorrido no panorama ecológico da arte  do  século XX,  como  um  pássaro em extinção,  aparição de  ordem  inegavelmente metafísica, essência e forma divinas (diria Baudelaire) do pássaro nu da poesia e de seus amores descompostos.

Um nudismo Proun (El Lissitsky) nos trópicos, lembranças metonímica do paraíso, graciosas construções-instalações não habitáveis, amostras quase-duchampescas, quase-vandoesburguesas de um ex-Éden artístico, onde a provável ironia embutida não passa de meio-sorriso.

Esses seres correta e rigorosamente nus, o olho os colhe por inteiros, como objetos cabíveis no bolso. E há música neles, mas não é sequer de câmara – é de cela, nicho e escrínio: são microtonais, minideogramas sólidos à Scelsi.

O Almandrade capricha nas miniaturas de suas criaturas, cuja nudez implica mudez, límpido limpamento do olho artístico, já cansado da fantástica história da arte deste século interminável, deste milênio infinito.

O trabalho de Almandrade, tanto pictórico quanto lingüístico, vem se impondo, ao longo de todos esses anos, como um lugar de reflexão, solitário e à margem do cenário cultural baiano. Depois dos primeiros ensaios figurativos, no início da década de 70, conquistando uma Menção Honrosa no I Salão Estudantil, em 1972, sua pesquisa plástica se encaminha para o abstracionismo geométrico e para a arte conceitual. Como poeta, mantém contato com a poesia concreta e o poema/processo, produzindo uma série de poemas visuais. Com um estudo mais rigoroso do construtivismo e da Arte Conceitual, sua arte se desenvolve entre a geometria e o conceito. Desenhos em preto-e-branco, objetos e projetos de instalações, essencialmente cerebrais, calcados num procedimento primoroso de tratar questões práticas e conceituais, marcam a produção deste artista na segunda metade da década de 70.

Redescobre a cor no começo dos anos 80 e os trabalhos, quer sejam pinturas ou objetos e esculturas, ganham uma dimensão lúdica, sem perder a coerência e a capacidade de divertir com inteligência. Um poeta da arte e um artista da poesia. Um escultor que trabalha com a cor e com o espaço e um pintor que medita sobre a forma, o traço e a cor no plano da tela. A arte de Almandrade dialoga com certas referências da modernidades, reinventando novas leituras. Trabalha com o mínimo de elementos pictóricos, duas ou três cores, dois planos, duas ou três texturas, um traço, etc. e vemos uma pintura, um objeto e uma escultura. Algo criativo que menosprezamos ao primeiro olhar, mas logo que somos mergulhados no clima que eles nos impõe, descobrimos alguma coisa de novo. A simplicidade que predomina nas composições desperta a imaginação e o raciocínio.

Sua poesia também traduz esse princípio de uma poética do mínimo e da leveza. Poucas palavras, versos curtos e soltos, sintéticos, muitos sem títulos e sem floreios. Artista plástico, poeta e arquiteto, Almandrade (Antônio Luiz M. Andrade) é um pioneiro da contemporaneidade na Bahia, embora sem o reconhecimento que seu trabalho merece. Como disse certa vez o poeta Cleber Borges: “Almandrade é uma daquelas personagens aparentemente deslocadas no tempo, ou à parte, que parece caminhar para o lado, quando o relógio insiste em tocar para frente”. Assim é sua poesia e sua arte.

Sua arte e sua poesia, aos poucos, vem sendo reconhecidas no Brasil e no exterior. Em 1997 participa da antologia International Poetry Review, com um poema traduzido pelo poeta americano Steven White. Hoje, a arte e a poesia de Almandrade representam o outro lado da Bahia e tem como palco a reflexão sobre a própria arte e sobre o estar no mundo. Destacam-se pela diferença e por uma trajetória singular. Como afirma o poeta Haroldo Cajazeira, Almandrade, sem se deixar devorar pela província, produz, com sua arte, “um saber sobre a impossibilidade de consistência de um sistema de signos.

Na parede do apartamento, ao lado de outros, um retângulo feito de carpete. A primeira impressão que me vem à cabeça é a do deslocamento. Sabe-se que o lugar “natural” do carpete é no chão, no entanto, este está cobrindo uma fração da parede.

O carpete é um tipo de piso adequado para lugares frios: é grande a sua capacidade de reter calor. Outra característica do carpete é que ele neutraliza o atrito dos sapatos sobre o piso: o andar no carpete é suave e silencioso. Não estaria o artista, ao colocar aquele carpete na parede, querendo silenciar a gula do olhar, impedir o trabalho deste olhar feroz, deste comedor de imagens, imagens do vídeo, da publicidade, da maré de representações que a sociedade contemporânea vai ininterruptamente tecendo?

Como já foi dito, o carpete pertence ao chão, é um objeto primordialmente para os pés. Assim, ao deslocá-lo para a parede é como se o artista estivesse virando o espectador de cabeça para baixo, obrigando-o a olhar para o chão.

Se os olhos continuam seu passeio pelo carpete de Alma, eles vão se deparar com um corte no centro do trabalho, algo como uma janela que permite ao olhar ver uma fatia da parede. A idéia do quadro como janela para o mundo é fundamental na história da pintura ocidental. O quadro seria uma janela através do qual o artista transformaria o espectador em voyeur do mundo. Porém, a janela no carpete mostra exatamente o que o quadro normalmente esconde, mostra a parede. Se o quadro usualmente é uma utopia, o não lugar, uma superfície através da qual se pode viajar, esse quadro de carpete, ao contrário, agarra o espectador pelo colarinho e o obriga a permanecer “aqui”, a se locomover do chão para a parede, da parede para o chão.

Claro, esse objeto tem seus pontos de fuga. Ele não é um ser destituído de parentes, o espectador pode lançá-lo de volta no caldeirão da história da arte. A luta contra o ilusionismo na pintura já é uma velhinha, já tem uma tradição e este trabalho de Alma é mais uma forma de puxar o tapete da arte, de deixá-la no ar.

Retornando ao carpete, me veio à memória que certos motéis usam este material não só no piso, mas também nas paredes e no teto. O alvo deste procedimento é evitar, ao máximo, a propagação do som, não permitir que as conversas ultrapassem a alcova. O alvo do trabalho de Alma tem uma lógica parecida. O artista quer evitar a festa do olhar, o olhar que classifica e descarta o objeto em uma fração de segundos. Ele exige para seu trabalho um espectador asceta, alguém que queira se perder em seu jogo inútil.

Bem, o que eu quis, com essas notas, foi mostrar uma característica básica dos trabalhos de Almandrade: eles são objetos bons para pensar, eles se divertem com a inteligência, são como que máquinas devoradoras de leitura.

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