willys de castro_

13 set_1983 - 17 out_1983

willys de castro_

O pressuposto imediato dos pluri objetos é uma percepção operatória, radicalmente anti-contemplativa- o olhar aqui jamais se perde, nunca se esquece. Ele incide, monta,

constrói, compõe e decompõe incessantemente. Instrumento de precisão, é compelido a detectar e analisar as propriedades do campo visível. Mas não há, a rigor, um campo visual e um olhar para inspecioná-lo, não há a clássica separação entre sujeito e objeto. A fenomenologia dos pluri objetos parte, ao contrário, do tema da constituição: é no Olhar – tomado em sua acepção plena- que aparece e se funda o campo visual. O mundo, o único mundo, é a ação de construí-lo e essa ação envolve e ultrapassa os termos do subjetivo e do objetivo.

O segundo pressuposto desses trabalhos é, assim, uma percepção pensante. Não existe ato simples, natural, não existe coisa dada. A medida humana é, desde o início, construção e realização. O objeto, qualquer objeto, por princípio não está apenas, é. E, bem entendido, em nenhum sentido metafísico. Muito ao contrário, em um sentido que se deve chamar científico- é por suas características lógicas, por resultar sempre de uma estria formalização. À arte cabe a tarefa de renovar o mundo ao chamar a atenção para os iminentes e eminentes mecanismos que acionamos para constituí-lo, mesmo no mais singelo e cotidiano gesto de perceber o que quer que seja.

O objeto de arte, desse modo, vai ocupar no meio ambiente um lugar complexo. Por um lado, ele se põe ali como uma coisa qualquer, rejeita a sua “qualidade”estética e, sobretudo,

as eventuais projeções psicológicas. Recusa, portanto, o estatuto tradicional de obra de arte e sua remissão ao imaginário. Essa remissão, no caso, seria uma demissão- é necessário que ele atue no mesmo registro do ambiente ao redor para efetivar a sua operação.

Discreta e literalmente esse objeto deve conquistar uma posição reflexiva na exata medida em que consiga captar o olhar distraído e volta-lo para ele mesmo, para as manobras concretas que, sem se dar conta, está efetuando.

Aí, sim, se consuma o momento poético, que seria também um momento de verdade- desperta do sono da rotina, a percepção retoma o seu sentido, digamos, sumariamente maravilhoso.

Seria possível até chamar o trabalho, à la Kant, de uma Poética do Analitico. Menos do que promover a síntese e acrescentar coisas ao mundo, Willys de Castro parece determinado em dissecar os milagres da razão, descer às várias e complexas dimensões, às várias e complexas articulações que produzem uma coisa, toda e qualquer coisa, Por isto, desde os objetos ativos de 1959, a estratégia sempre foi menos criar objetos do que evidenciar o caráter problemático do objeto, mostrar por assim dizer a sua situação, apontar para a sua natureza. No limite, investigar as condições de seu aparecimento. E se o problema do aparecer remonta, com toda a certeza, à mais pura tradição metafísica grega, recebe aqui uma resposta decididamente moderna- trata-se de interpretar a percepção como uma certa modalidade de fazer lógico.

Claro, a arte não repete, não deve repetir simplesmente as formulações da ciência. Basta lembrar a dissensão do artista frente ao mecanismo concretista. A dimensão estética faz muito mais: repõe o indivíduo no conturbado e estranho mundo atual ao levá-lo a fazer a experiência sensível do Real como o compreende e erige a ciência moderna. À maneira de Josef Albers, por exemplo, Willys de Castro vê a arte como um esforço de estruturação do real paralelo ao da ciência e indissociável dela. Se alguém argumentar que haveria, assim, algo de ciência nesta arte, talvez sejamos obrigados a concordar. Para logo acrescentar que, em última instância, também haveria algo de arte na ciência.

Mas antes, durante e depois dessa discussão acerca das relacoes entre a arte e a ciencia, existem estes pluriobjetos. Na verdade, eles resumem a discussão, trazem incorporado esse dilema especificamente moderno. Em sua formalização estão postos os termos do debate, em seu próprio modo de ser aparece, flagrante, o desejo de, passando pela ciência, virem a se tornar arte. Dai o aspecto meio enigmático de seres lógicos e, ainda assim, existenciais, impregnados tanto de raciocinio analitico quanto te intensidade estética, interrogados como puros processos de informações visuais, eles resistem, parecem excessivamente singulares, quase corpóreos; tomados como obras plásticas tradicionais, ameaçam reduzir-se a umas poucas e discretas manobras perceptivas.

E, no entanto, não se pode resolver a questão apelando para a ambiguidade. Seria desconsiderar o próprio trabalho- os pluriobjetos se pretendem fatos plasticos inequívocos que pressupõe, como vimos, o grau zero do conceito de mundo. A sua missão é determinar o espaço onde aparecem, propriamente falando, realizá-lo. Não há lugar para um drama: o corpo da obra coincide com a sua ideia, tem que ser transparentes um ao outro. Corpo e ideia querem se fundir para positivar uma plena presença lógica. Como corpo aspira à idealidade de puras operações; como ideia solicita um corpo, exige materializar em um mundo. Matéria e ideia, a famosa dualidade de toda a metafísica ocidental, desejam se integrar fenomenologicamente nesses pluriobjetos. Esta seria, em última instância, a resposta do artista à crise do século vinte e ao seu estranhamento cultural: ciência, arte e técnica caminham juntas para instituir o Real e projetar a vida. O sentido exemplar da obra de Willys de Castro me parece assim a sua heroica (desculpme, não encontro termo menos enfatico e tão verdadeiro) coerencia e fidelidade ao projeto construtivo como foi assumido e desenvolvido no Brasil. Por isto os pluriobjetos, desde a minuciosa execucao ate as suas consequencias finais exprimem muito mais do que uma deliberacaao subjetiva- exprimem as conquistas, as tensoes e contradicoes de todo esse projeto. Neles estão inscritas, historicizadas, teorizadas e vividas as questoes cosstrutivas que, sobetudo durante um certo período, nas décadas de 50 a 60, ansiavamos por tomar nossas. O intrigante, e que nos faz pensar e, afinall, escrever, é que, evidentemente vinculadaos a esse “passado”, os pluriobjetos sejam ainda tão presentes e, gracas a sua inteligência irredutivel a rotulos, tão abertos ao futuro.

Ronaldo Brito