waltercio caldas_

23 nov_1989 - 23 dez_1989

waltercio caldas_

CALOR BRANCO

 

Estranha e de certo modo aniquilante a objetividade das peças de Waltercio Caldas. Não uma objetividade que nos avassalaria pela demonstração de uma empiria qualquer ou de um eventual  processo de constituição do trabalho. Mas aquela que resulta simplesmente da presença inflexível e da evidência incontornável de cada uma das peças:algo assim como as formas de um pensamento ativo e atual. Não, portanto, uma objetividade de coisas, mas de imagens que ganha espessura de coisas… E se há demonstração, como logo vemos, é de um tipo curioso, que inquieta e deixa atônito: pois nunca põe os objetivos onde estamos. “Procuro objetos recíprocos, que se assemelham ao lugar que ocupam – no alto da montanha, o olhar se justifica no horizonte”.
Nossa experiência de tempo e do espaço, instâncias privilegiadas da percepção, são assustadoramente transtornadas: essas peças nos capturam para um tempo e  espaço internos, que nos pedem outra velocidade e outra freqüencia.

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Talvez pudéssemos pensar, diante da exposição de Waltercio Caldas, que estaríamos defrontados a uma asséptica taxionomia dos objetos, Ainda, é claro, que se tratasse de uma taxionomia bastante cruel. Estaríamos buscando naquelas peças, irrecorrivelmente marcadas pela incompletude, uma sintaxe e uma morfologia que nos permitiria interpretá-las, a todas como um conjunto, e a cada uma como uma totalidade: um objeto. Com isso, teríamos, certamente, eliminado este problema tão fundamental a elas – a insuperável distância que as constitui de seu próprio interior, E no entanto, seriam esses os traços mais determinantes nos singulares processos de formalização adotados pelo artista…

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Desaconselhável, portanto, pensá-las como objetos, muito menos como objeto de uma categoria formal chamada escultura. As obras delimitam e ativam um campo, no qual conta antes o trânsito imprevisível e febril entre partes desirmanadas, o encontro inusitado de grandezas dessemelhantes, do que propriamente o ato de perfazer indivíduos discretos. Há aí um deslocamento frenético de corpos, esse deslocamento mesmo sendo a matéria do trabalho. Digamos que acabam por se configurar, como diz Waltercio, instantes escultóricos, e que o deslizamento incontrolável de um real instituído para um real apenas possível encerra um movimento que não tem nada de natural.
De um certo ponto de vista, trata-se de uma obra absolutamente estática. Tanto melhor. Nossa percepção é assim demovida da tentativa de estabelecer com as peças quaisquer simetrias afetivas, pela identificação de alguma natureza nelas. Essa aparente imobilidade é apenas a recusa de se oferecer frouxa e ociosamente à identificação, à idéia da comunicação pelo diálogo ou pela interpretação. Nesse sentido, elas são onipotentemente herméticas… ou as destruímos por meio de uma percepção que se instala plenamente, capturando a linguagem do momento em que ela está para ser ou que já foi há muito tempo – ou simplesmente não temos acessos a elas. Restando apenas a percepção em estado puro, somos tragados por distâncias fabulosas, mas sempre num movimento imperceptível de partículas.

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A desmaterialidade metódica e demonstrativa da obra de Waltercio – Descartes pelo avesso – está ligada ao fato de que em seus processos de formatização não lhe interessam propriamente os materiais. Quer dizer, não há aqui uma fenomenologia dos materiais. Talvez se possa dizer que essas peças sejam o final de um processo, o resultado de uma combustão. A química desses encontros probabilísticos faz com que as peças se inflamem e a percepção se deflagre. Mas sem objeto, se materiais que se ofereçam como fluidos condutores, ela deverá atualizar incessantemente sua própria experiência.

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Parece que o que importa ao artista é a investigação em direção a um outro modo de acesso ao objeto estético, que não tenha de passar pela mediação de uma certa empiria do processo perceptivo, que a esta altura já terá se convertido em fetiche.

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E que n!ao nos enganemos: a estridente e obsessiva artificialidade dessas obras não pode ser explicada como sintoma de sublimação da matéria. Pois o que emerge aqui é outra idéia de matéria, com o trabalho do pensamento adquirindo brutal carga orgânica, movimento latejante de sangue, veias e artérias tensas com o iminente desabrochar de uma reversão total das idéias, sabotagem sutil da administração de previsibilidade que regula nossa relação com o visível. É assim, por exemplo, com a fugaz aparição da escultura “Godard”, vivência instantânea de um espaço e tempo internos, que jamais poderemos mimetizar, mas que por um lapso de segundo realizamos como possibilidade.

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Provocativamente, gostaria de pensar no design dessas obras como uma fria siderurgia imensa em umidade orgânica, clima de estufa propício à proliferação de uma intensa e turbilhonante experiência mental. Não estamos de fato habituados a viver sem os álibis da naturalidade. É difícil aceitarmos um tempo e um espaço que pertençam às obras e somente a elas, e que no entanto nos abram a possibilidade da apreensão pontual de um infinito e de um incomensurável, porque nos desdobrando sempre para além de onde estamos. Isto é aquilo.

 

Sonia Salzstein Goldberg

 

imagens da exposição