waltercio caldas_

20 ago_1994 - 26 nov_1994

waltercio caldas_

INTERROGAÇÕES CONSTRUTIVAS

Paulo Sergio Duarte

 

Queremos do clássico, o estável e  sábio condutor de história, uma norma, um padrão de referência. Esperamos da arte contemporânea sua única condição: seu caráter experimental, a provocação provisória, a aposta no instante da percepção quando se realiza o insight, como costumava definir a psicologia antigamente, e, sobretudo, a transmissão de um conhecimento que acrescente algo à cultura marcada pela saturação de informação, pela velocidade de uma atualização, pela diversidade conflituosa. Essas duas faces opostas – a estabilidade clássica e o caráter experimental da arte contemporânea – só podem ser reunidas raramente graças a um talento e inteligência preciosos. Esse encontro, que não podemos perder, se acha nos trabalhos de Waltercio Caldas.

 

Os vasos comunicantes, lição primária da física, podem ser transformados em objeto de arte e nos transmitir outro conhecimento. Tão familiar e ao mesmo tempo tão estranho, figura esquisita, retrato de mônada, sua autossuficiência chega a incomodar a razão. Esse volume, lugar no espaço é quase um desenho mesmo sem trazer consigo qualquer memória do plano. Um circuito de tubos contendo líquido guarda na sua matéria hermética seu contrário: a absoluta transparência na delicada somatória de seus elementos, o ar, o álcool e o vidro na tradicional apresentação dos três estados da matéria. Tudo no quase nada.

 

Sóbrias e ao mesmo tempo instigantes, como as operações de Waltercio contrastam com o ruidoso e estúpido espetáculo do mundo que as cerca.

 

Se ausência de cor em algo mesmo que o branco, a transparência, é objeto de reflexão, em outra escultura em madeira serão explorados o jogo de forma e a oposição cromática entre o pau ferro escuro e de textura rica como o jacarandá e a clara peroba-do-campo que, juntos, conectados numa peça única, se desencontram e não brigam. O claro e o escuro, a reta e a curva, a simetria exata e a incompletude estão presentes. O elemento mínimo, num lance de sutil economia sem truque, nos desorganiza e nos ensina a olhar. Essa quase estrutura é um desafio. Ela nos atrai para ali, onde se encontra fisicamente ausente, para aquele vazio criado pela pequena distância onde pontas não chegam.

 

Apontar para cima, subir, ascender, assumir um movimento vertical é mimesis fácil da tendência idealizada do mundo maníaco e competitivo que vivemos. Fino é fazê-lo em apenas uma indicação, em alguma coisa que ultrapassa o signo e ao mesmo tempo é mais econômico, reunindo uma pequena coleção de verticais. Sobre o movimento horizontal da base oblonga, pontuda, calma e agressiva ao mesmo tempo, se erguem as linhas discretamente descontínuas verticais. Somos surpreendidos pela diferença da cor do cobre e a finalização em aço inoxidável. Walter de Maria realizou uma instalação de pára-raios (Lightning Field) numa região sujeita a descargas elétricas atmosféricas. Seu trabalho eram os raios que caíam no vasto território. A escultura de Waltercio me lembrou, numa escala íntima, essa land art, numa outra ordem. Seria um dispositivo capturando pulsões ópticas – forma de energia libidinal dirigida para o olhar – em interipres.

 

O movimento da obra de Waltercio na esfera da história da arte brasileira pós-construtiva, incorporando a contribuição neoconcreta e rediscutindo seus axiomas e postulados através de um diálogo conceitual, já é uma das faces reconhecidas por todos que acompanham o desenvolvimento desse trabalho há mais e duas décadas. Além da interrogação cognitiva do conceito, o conhecimento desse trabalho traz uma dimensão existencial.

 

Na arte do século vinte, a vertente expressiva representada pela crítica social, pela angústia e pela melancolia, que tem, entre nós, mestres como Segall e Goeldi, monopolizou a atenção de críticos e historiadores sobre os aspectos existenciais da arte contemporânea e operações como as de Waltercio Caldas são frequentemente associadas a uma atitude puramente intelectual diante do fazer artístico. Essa polarização foi ainda mais reforçada pelo neo-expressionismo dos anos 70 e 80, quando um freqüente pastiche da poderosa arte expressionista da primeira metade do século foi disseminada numa manobra bem sucedida dos mercados europeu e americano.

 

No projeto de expandir o campo do olhar explorando uma inteligência puramente óptica – a arte de Waltercio raramente traz qualquer retórica embutida – existe sempre um resíduo cético, onde a interrogação se apresenta como uma novidade: a dúvida feliz. Pervertendo a lógica positiva que sustenta a racionalidade mundana e seu elogio mesquinho do que se convencionou chamar de “resultados”, esses exercícios insistem em contrariar o senso comum, Negando o culto da imagem e a falsa generosidade desse universo farto de figuras e pobre em raciocínio, as esculturas de Waltércio trazem na sua ascese uma sutil dose de humor da qual deriva o prazer. Essa dimensão existencial se realiza num processo em cadeia, em sucessivos enigmas para a retina, na promessa de que, se não cessarmos de usar a inteligência, é possível conviver com o real, apesar de sua brutalidade e aparência absurda.

 

São Paulo, outubro de 1994.