tuneu_ OUTROPLANO
24 ago - 24 out_ 2024
O PARTIDO DA PUREZA
Dos desenhos em nanquim realizados em meados dos anos 1960, formas e corpos empilhados — aquelas a sugerirem blocos apoiados uns nos outros, possíveis visões sombrias e enigmáticas de muros, edifícios, cidades imaginárias, sabe-se lá o que sejam; estas, cabeças, troncos, sexos, todos desconjuntados —, a obra de Tuneu, como é comum acontecer, conheceu muitas variações. Nascido e criado em São Paulo, viciado em visitas a museus, a galerias e às sucessivas edições da Bienal de São Paulo, primeiramente como visitante e, a partir de 1967, na famosa Bienal Pop, como participante — de passagem, o mais jovem participante, ao menos até então —, era natural que fosse sensível à produção de seus colegas, daqui e de fora, a começar pela da sua mentora Tarsila do Amaral (sim, ela mesma, acompanhou-o dos 10 até seus 25 anos); que sentisse o impacto dos desenhos de Wesley Duke Lee; que acompanhasse deslumbrado a desembalagem das 39 pinturas da sala Edward Hopper, na mesma Bienal de 1967, onde viu Robert Rauschenberg pendurando sua imensa Barge, pintura de 980 cm de largura, a maior de toda sua série de 79 pinturas silk screen.
A indicação dessas quatro referências não é gratuita. Todos esses são artistas figurativos, enquanto Tuneu terminaria pendendo para a abstração, mais precisamente para a abstração geométrica. Mas que não se confunda com o Concretismo. Para começar, uma de suas afinidades estético-afetivas era Willys de Castro, que, como seu companheiro Hércules Barsotti, juntou-se aos neoconcretos cariocas. Tuneu divertia-se com Willys zombando do dogmatismo de Waldemar Cordeiro, o líder dos concretistas, para quem o marrom não era cor. O problema é que Tuneu, ademais do apuro formal, desde sempre cultuou a cor, jamais separando uma dimensão da outra.
A variação da obra de Tuneu não foi tanto pela anexação de territórios de linguagens exteriores a ela, mas pela exploração sistemática, diligente, meditativa dos elementos constitutivos da pintura, de formas geométricas aplicadas a ela, incluindo desde o campo quadrangular delimitado pela moldura, a própria moldura, às quatro linhas que perfazem os limites da folha de papel, do cartão, ou do tecido da tela; considere-se também as superfícies desses suportes, sobre os quais ele pinta, risca, corta, como as séries formadas por cortes, dobras e sobreposições de planos. E cores, claro, muitas cores, variações e contrastes tonais próprios de sua condição de ouvinte musical cultivado, daqueles que reconhecem ritmos compostos complexos e os matizes de certos glissandos.
Para essa exposição, composta por um conjunto de papéis e pinturas, Tuneu mantém o hexágono como protagonista. Como responder a isso? Talvez porque os favos das abelhas sejam pequenos hexágonos confinados com a pureza, com a doçura e sua condição de alimento vital; talvez porque o mundo tenha sido feito em seis dias; talvez porque o hexágono seja a soma e produto dos três primeiros números, o um, o dois e o três, o que o caracteriza como o primeiro dos números perfeitos; talvez porque uma infinidade de estruturas cristalinas, de um floco de neve ao átomo de carbono, sejam hexagonais; talvez porque a escala pentatônica, como queria Pitágoras, tenha seis intervalos iguais. Talvez, enfim, para encontramos um sentido de ordem e pureza numa vida carente de sentido, num mundo permanentemente em crise.
Sim, talvez tudo isso seja uma boa coincidência, o que pessoalmente duvido, e convido o leitor a ser prudente, pois não sei se ele está advertido do que podem, consciente ou inconscientemente, os artistas. Seja como for, olhe para cada um desses trabalhos e note que todos eles – formas abertas, expandidas, desdobradas, pontiagudas, que sejam – contêm, no seu interior, um hexágono perfeito. Por vezes, como que atendendo a sua natureza versátil, eles se esparramam, correm para os lados, para o alto, como pétalas geométricas de um lírio, que se vão abrindo em movimentos alternados e em posições desiguais, mas precisos como se dotados de dobradiças. E é frequente que, ao mesmo tempo em que isso acontece, uma das seis linhas laterais de um desses hexágonos resolva afirmar sua condição simultânea de aresta de um quadrado que se projeta para dentro dele, numa dinâmica que se repete e prolifera em triângulos, trapézios, cheios ou vazados, ocupados por uma ou duas cores, ou reduzidos às linhas de contorno, em alguns casos uma fenda retilínea de luz. Note como as cores se correspondem, vibram consoante se aproximam, quando acontece de serem contrastantes, dissolvem-se umas nas outras, quando vizinhas ou quando são sobrepostas, em velaturas mais ou menos discretas, com uma cor habitando um plano submerso à cor flutuando na superfície.
Trabalhando com o hexágono, essa forma perfeita, Tuneu examina-o com o apuro aparentado ao de Newton submetendo um prisma à luz, descobrindo que o simples sólido de secção triangular de vidro, com suas faces planas, polidas, e seu corpo transparente, tem o poder de transformar um feixe de luz branca na projeção de uma mancha com as cores do arco-íris.
Agnaldo Farias
FAUUSP