tomie ohtake_

junho_ 1990 - julho_1990

tomie ohtake_

Tomie Ohtake pertence a geração que desde os anos 50 ajudou a consolidar um caráter para a arte brasileira. Um caráter, porque ela foi das artistas que ao escolher um caminho solitário, da introspecção e uma linguagem intimista, da abstração, demonstrou que para ser uma artista sul americana não era necessário uma pintura típica, exótica, narrativa ou figuração política. São artistas como Tomie Ohtake e Iberê Camargo, os titãs que, cada um à sua maneira, abriram espaço para que novas gerações percebessem que mesmo ao optar por uma linguagem internacional, um grande criador pode deixar sua marca inconfundível.

 

Ao longo de uma carreira, existem formas que se tornam reconhecíveis e familiares no repertório de um artista.

 

O que torna ainda mais interessante a produção recente de Tomie Ohtake é que não se trata apenas de novas versões de quadros já resolvidos. Ela procurou disciplinar-se nos últimos quatro anos, realizou estudos e projetos sem cessar e finalmente concluiu um pequeno número de pinturas que ela própria considera bem realizadas

 

Esta preciosa seleção é um exemplo de vitalidade e da curiosidade da artista em arriscar-se a novas aventuras formais.

 

Muitos anos atrás, o crítico Mário Pedrosa referiu-se ao caráter da espiritualidade da pintura de Tomie Ohtake. E é verdade que desde outras décadas, seus companheiros de outras latitudes ou almas onde ela encontrava ressonância, eram artistas como Marc Rothko ou Mannessier.

 

Houve um período recente na pintura de Tomie Ohtake em que ela chegou a formas quase escultóricas e superfícies muito planas com um jogo de cores direto e intenso. Ela agora retoma uma outra questão – que ela já trabalhou numa fase branca no início da carreira – as transparências, a vibração da pintura e a força do que vem “além do quadro”, “behind the canvas”.

 

São camadas de cor superpostas e uma estrutura que prende e ao mesmo tempo liberta o olhar sobre a pintura. Alguns elementos formais muito simples, círculos, elipses, flutuam no espaço cromático onde ela quebra a idéia de fundo e figura. Todos os elementos pulsam sem que nenhuma forma ganhe a predominância do primeiro plano.

 

A pintura, e disto a produção brasileira recente tem se esquecido, é essencialmente uma arte de maturidade. As somas da vida, as experiências com o pincel, a reflexão sobre as próprias telas, trazem uma força a cada nova pintura, que não é identificável pela técnica ou pela composição. É como uma aura, uma riqueza a mais, uma atmosfera que cerca cada trabalho. Este é o momento que Tomie Ohtake revela em suas novas pinturas. Ela está em plena concentração, pintando com uma alegria interior que alterou sua paleta de cores e pinceladas e nos oferece com esta pequena amostra de uma fase que está em progresso no seu estúdio – onde ela continua a trabalhar – uma lição de vida e de rigor com a pintura. Mas um rigor e uma disciplina que também são revestidos com imenso carinho, com se vê na qualidade das suas pinceladas.

 

Casimiro Xavier de Mendonça

Paris, maio de 1991

 

As esculturas dissipatórias de tomie ohtake

associar a idéia de ordem à idéia aparentemente contraditória de dissipação poderia parecer um paradoxo em termos. a primeira evoca um mundo de formas nítidas, definidas, cartesianas: uma sobriedade construtivista, vale dizer, clássica; a segunda convoca, desde logo, o princípio oposto: a voragem barroca, tensão para o desperdício ( uma estética e também uma ética – uma visão lúdica do mundo – como quer o poeta-cosmólogo severo sarduy).

e, no entanto, são essas noções em aparência colidentes que vão servir à ciência moderna para descrever certas “singularidades aleatórias” nas quais “a dissipação de energia e de matéria – geralmente associada às idéias de perda de rendimento e de evolução para a desordem – torna-se, longe do equilíbrio, fonte de ordem”*.

a essas configurações singulares – e, não obstante, “naturais”: tão “naturais” como a queda dos corpos graves”-deu-se o nome de “estruturas dissipatórias”. são elas – regidas por uma dialética dde “flutuações incontroláveis” e “determinismos médios”- que explicam o fenômeno da vida. foram elas que permitiram ao russo ilya prigogine, prêmio nobel de química de 1977, e à sua sua colaboradora, isabelle stengers, propor uma nova aliança: um novo modo de encarar as relações homem-cosmo e de assumir o sabor científico como “escuta poética da natureza”, através da qual o ser humano – já não mais um cigano despaisado na solitude do universo – se torne capaz de discernir o que há de aberto e inventivo nos processos naturais.

sou levado a pensar nessas “estruturas dissipátorias” diante de arte de tomie ohtake. uma arte chega agora a um patamar de culminação – de maturidade gesto-pictórica e sabedoria crómatica – que só pode conduzir a uma prática de plenitude: por meio dela temos acesso a uma cerimônia de exaltação agraciada e gozosa do olhar.

formas privilegiadas – círculos, núcleos, elipses, rombos – se deixam perpassar por transparências; se fazem percorrer por manchas e tachaduras; se abrem ao acaso líquido das incidências de cor e luz; radiam ou entenebrecem, à medida que o gesto pictórico as vai gestando como se as fosse resgatando de um limbo cósmico.

vejo aqui um berçario de sóis – quatro esferóides de platina luminescente contidos num estojo-casulo aúreo; vejo acolá estranhas concreções abauladas: um cetáceo azul mergulha nas entranhas do céu-oceano, esfarelando treva ao longo desse cruzeiro abissal; mais além, esbraseia, hipnótico, um vermelho carbuncular, ou então é um olho espiralado, espiralante, que se afunila e ensimesma – íris no íris – repetindo a mirada paradisíaca na qual dante desfaleceu, transluminado; e considero também essa coleção hagorômica de luas – semilúnios, plenilúnios – laceradas de roxo, esgarçadas de cinza, verde, azul – luas em rodízio que, algumas vez, se podem deixar circular de cor (parasselene se diz dessa aura astral) como se tocadas pela fímbria flamante do manto de plumas das tennin, ninfas dançantes do céu de buda.

agora, o amarelo expode: céu-girassol, comburentes crateras sulfúreas, topázio em pânico. então, uma estranha flor violácea, forma radiosa, quase ectoplásmica, se põe a dialogar com outra, verde vária – água-viva? medusa? borboleta espectral? – esvoaçando contra um fundo roxo-poroso, por onde vaza o sépia, o vermelho, o azul. e ocorre esse triângulo-coração, encarnado, carnoso, que se esfuma de nuvens e manchas, enquanto, mais adiante, num outro espaço-quadro, irrompe uma rosácea de luzes turbulentas e frestas escuras, para de súbito engastar-se num círculo apaziguado de rubis: corola zenital demarcada a raio-laser, concórdia discorde.

a dialética entre as macroformas seguras e definidas e a disseminação das microestruturas, dos acidentes e incidentes cromáticos, das velaturas e transparências que vão como que dissipando as certezas e limites dessas mesmas formas, que as vão desestabilizando e dissolvendo, eis a sigla de beleza dessa arte. uma arte, como a vida, que se deixa ritmar pela contradição. contemple-se, por exemplo, este quadro, o último em que vou me deter, e que bem pode servir de emblema e ideograma para a pintura de tomie ohtake: aquele, todo azul (mas de um azul não compacto, de um azul sujeito a clareiras, assediado pela iminência do vazio), onde – nesse azul – uma nervura enérgica- um embrião, um vibrião, um bambu cósmico inscreve – dissidente – o seu “porém” verde**.

haroldo de campos

são paulo/ abril ’91

* cf.ilya proigogine et isabelle stengers, la novelle alliance, gallimard, paris, 1979; a nova aliança, editora da universidade de brasília, 1984.

* * os quadros “reimaginados” verbalmente neste comentário (antes glosa prazerosa do que árida metalinguagem) pertencem a dois conjuntos, organizados para duas mostras diferentes, no rio de janeiro e em são paulo.

 

 

 

imagens da exposição