sergio camargo_Ética e Estética
29 mar - 17 maio_2025

Ética e estética
Ronaldo Brito
O modo feliz como se autoenvolvem – os elementos geométricos acabam por se encaixar à perfeição, nada falta, nada sobra, acrescidos ao brilho do mármore ou do Negro Belga – não deixa margem a dúvidas: estamos diante de modernas esculturas clássicas. Apresentam aquela espécie de beleza perene imune ao tempo, porém, sem regras a priori que viessem a inibir seu caráter de pesquisa livre – cada uma das peças resulta de uma combinatória metódica a valorizar sobretudo dilemas e paradoxos. Distantes da ortodoxia concretista e de sua serialidade mecânica, decompondo as figuras geométricas segundo uma ordem linear, tampouco seguem a morfologia tradicional da estatuária ocidental. Mas o mármore se faz presente, a dar consistência histórica (e força lírica!) a essas manobras abstratas, inverossímeis do ponto de vista da lógica figurativa.
Sergio Camargo opera por meio de séries geométricas, partindo do cilindro ou do cubo, mas parece perseguir somente a exceção, ali onde a figura desmente sua suposta integridade imutável. O corte da máquina é preciso e anônimo – o esculpir artesanal desapareceu no horizonte, incapaz de acompanhar raciocínio tão móvel e abstrato –, já o produto final é justo o oposto: uma peça de escultura única e distinta que resume uma pergunta: como vim a ser? O seu poder de atração e sedução estéticas deriva, em larga medida, dessa pergunta reincidente. E, em certo sentido, a pergunta é irrespondível, ou não permaneceríamos colados a essas esculturas (e aos sensacionais relevos que as precedem) muito depois de decifrarmos sua origem – elas, ativas e convidativas; nós, cativos de seu acontecimento.
A curadoria se revela, desculpem o contrassenso, um ótimo problema espinhoso. Há que manejar e remanejar no espaço da galeria, de saída, material tão pesado quanto delicado. E evidenciar sua vocação metódica e serial sem cair em um didatismo protocolar, em tudo e por tudo estranho ao espírito de aventura que distingue a poética de Camargo. Não confundir, no entanto, imaginação geométrica inspirada com fantasia arbitrária. O artista não faz o que lhe vem à cabeça, e sim o que o estudo profundo e prolongado das condições de possibilidade da figura do cilindro, por exemplo, faculta. Ele pode vir a alinhar dez cilindros em calculada ondulação para concluir sua Homenagem a Bernini ou esticá-los em cortes limítrofes, que se reduzem a até cinco milímetros, nas extraordinárias peças negras do final de sua produção. Na primeira, instintivamente, entramos logo a projetar uma escultura pública de escala monumental que faria justiça à importância cultural do construtivismo brasileiro. Em tempos tão frívolos e obscuros, seria no mínimo um oportuno sinal de vida inteligente. Já nas longas e enigmáticas peças horizontais em Negro Belga, me ocorre sempre um antigo ditado: o clássico é um romântico que deu certo! Estaríamos aqui, a meu ver, muito mais próximos ao sublime romântico do que ao belo clássico.
Tínhamos, ainda, à nossa disposição exemplos significativos das inúmeras variações em torno do cubo, típicas do conjunto da obra, desde os que se equilibram inquietos na vertical àqueles que se desdobram em intercambiar seções do bloco geométrico de maneira inesperada, a demonstrar a irresistível vocação moderna para a disponibilidade – nada é tão definitivo que não possa se transformar numa versão mais inventiva e radical de si mesma. Outrora representante do eterno, depois de Brancusi a escultura torna-se o exemplo consumado da mobilidade existencial moderna. Semelhante voracidade, contudo, impõe uma contrapartida inegociável: toda mudança terá a medida de sua verdade, nunca a de suas veleidades. Eis aí onde se realiza, por definição, a máxima da razão emancipada moderna: a coincidência entre ética e estética.