sergio camargo_construção
14 jul_1997 - 26 ago_1997
Construção
O trabalho de Sérgio Camargo acresentou uma variável surpreendente à tradição construtiva moderna em seus desdobramentos brasileiros a partir dos anos 50. Porque uma inesperada e heterodoxa vertente, lírica e solar, brotava desse trabalho, praticamente ao mesmo tempo em que no contexto internacional o informalismo cético da produção européia e a anti-metafísica irreverente e “integrada” da pop art começavam a fustigar o legado da arte moderna. Isto é, quando tudo levava a crer que a linhagem construtiva tinha chegado a seu esgotamento histórico., finalmente reduzida ao tecnicismo banal da op art ou de tantas tendências matemático-geométricas que se vulgarizaram mundialmente, e quando o melhor da arte contemporânea denunciava o encetamento de um lento processo de saturação cultural, a obra de Sérgio repunha a noção de forma no centro de uma especulação essencialmente otimista e experimental.
Assim, desvinculando-a de um sistema logocentrista, aparando seus corolários dogmáticos, o artista relançava a questão da forma ao horizonte cultural dos problemas contemporâneos, uma forma agora lábil e bastante relativizada. Era evidente que não se tratava de repercussão modernista subsidiária e epigonal: ao contrário, parecia que o artista se beneficiara estrategicamente do deslocamento em relação aos grandes centros de irrediação cultural, pois a origem “regional” e “descentrada” de sua obra teria permitido a ele repensar a herança construtiva totalmente livre do destino formalista ou da lógica do design que quase sempre iriam imantá-la nas sociedades avançadas do pós-guerra.
Num ambiente cultural descomprometido (e longe da corrida agonística da história da arte recente), Sérgio podia sentir-se plenamente à vontade, entre fins da década de 50 e princípios dos anos 60, para realizar a singular associação do classicismo construtivo a um difuso imaginário pós-surrealista. Embora os compactos toros femininos de seu período formaitvo já indicassem essa raiz construtiva ( a genérica herança cubista da Escola de Paris) , seus primeiros relveos curiosamente sugerem uma matriz orgânica e fortemente expressiva, alguns dels ( conhecidos apenas por fotos) feitos de areia e outros apresentando superfícies conturbadas, com fileiras irregulares de pontas de ferro retorcido. Ponto de partida inesperado para uma obra que logo se demonstraia á mercê de delicadas relações de harmonia e equilíbrio. Mas tudo indica que foi justamente dessa dualidade que pôde se produzir aquela noção pecuilar da forma.
É tal associação, por exemplo, que em alguma medida explica o intresse subsequente do artista por enigmáticos jogos de linguagem ( cilindros que são torsos que são cilindros novamente) anárquicos e descontrutivos, tanto quanto a transparência e clareza meridonal que sempre deixarão exposto o pensamento estrutural de seus trabalhos. Reportada a esse informalismo inicial, a noção de ordem que ingressava na obra de Sérgio não poderia ser tomada simplesmentecomo tributária de um ideal clássico e “ingresiano”, porque expressaria, em primeira instância, a procura de uma ordem universal da matéria, forjada no acaso e mediante processos de transformação fisiológica dos organismos. Ao invés da histórica dualidade moderna entre natureza e cultura, o trabalho fundiria ambas num mesmo grau zero, acolhia o acaso, a assimetria, a singularidade e a contingência, como se brotasse de uma espécie de compreensão biológica do mundo da cultura.
Com isto, a elegância da forma culta estaria inteiramente pressuposta na elegância das formas naturais, potencializadas em sua emergência aletória no universo cotidiano, resgatadas à sua violência e amoralidade originárias e recompostas numa multiplicidade de novas cadeias genéticas. Não é difícil perceber nas esculturas de Sérgio a mesma graça antropomórfica, naturalista, do desenho de Niemeyer. Só que em Sérgio esse naturalismo é permanentemente desfeito e devolivdo á paisagem de modo anagramático, por assim dizer, não se tratando no caso, propriamente, de formas que se inspiram na natureza, mas da eleição da natureza como modelo. Aí estaria, afinal, um modelo empiricista, irredutível à ordem da consciência, onde uma experiência ilimittada e diversificada da forma – que fundia o mineral, o vegetal e o animal – poderia se produzir a partir de estruturas arcaicas, “naturais” e próto-subjetivas. .
Ao atinar com certas matrizes genéticas que redundaram em inúmeras famílias de relevos e esculturas, o artista estaria privilegiando uma inesgotável inteligência combinatória, encontrável na natureza e também nos jogos, algo como um heterodoxo modelo de intervenção no real, ensinando a infinidade de configurações sob as quais uma mesma questão fundamental poderia ser indefinidamente reformulada. Nesse sentido, a capacidade extraodinária de Sérgio, de gerar a partir de um único módulo um sem número de novas esculturas, não lisonjeia nenhuma ética do fazer; nenhum anacrônico suor demiúrgico da criação escultórica. Muito pelo contrário, e especialmente depois da intensa produção de relevos dos anos 60, o trabalho quis cada vez mais poupar-se, reduzir-se a uns poucos procedimentos essenciais, dos quais caberia evidentemente extrair uma quantidade máxima de novas possibilidades associativas.
Há então essa espécie de calmaria hedonista e matissana em sua escultura, aristocraticamente revelando-nos a grandeza espiritual do lugar-comum, pois o que se manifesta como desenhvoltura e plasticidade de formas na verdade se origina na repetição e na comutação de um conjunto restrito de elementos. A disponbilidade quase lúdica e a atitude meio flaneur com que um único elemento vai suscitando novas configurações no trabalho do artista tem, é claro, algo a ver com o humor e a ironia pop , tal disponibilidade, no caso de Sérgio, jamais poderia percebê-las como fantasmas, esvazidas de sua tangibilidade material.
Ele apenas as relativiza e as remete para fora da jurisdição absoluta que um sujeito teria sobre elas. De qualuqer maneira elas têm, sim, materialidade, presença fenomênica, e a princípio se apresentam de modo abtruso e heterogêneo, misturadas às formas convencionais da existência cotidiana. Frente a elas a atitude estética , em sua natureza fundamentalmenre produtiva, é de seleção, associação e recombinação incessantes. Poruqe, como foi dito, as formas já pertencem à esfera do prosaico, já estão postas para a vida cultural, e nesse sentido Sérgio despreendese com desenvoltura de toda metafísica formalista. Longe, entretanto, de vê-las enquadradas pelo híper-realismo cultural da pop, o artista reconhece a elas uma forte capacidade regenerativa, uma vez que despontam num mundo molecular que a um só tempo precede e suplanta a dinâmica da lógica cultural.
Ao mimetizam uma “ordem natural”, essas formas se emancipam como fatos irredutíveis, inaugurais, contundentes e imediatos, resistentes a toda mediação intelectualista ou historcista. Não é a toa que, ao lado dos relevos, mesmo suas esculturas se desdobrem como planos, como jogos de superfícies rasas, literais, que não escondem um núcleo secreto; não é à toa que sejam absolutamente brancas ou absolutamente pretas, que revelem sem reservas sua operação construtiva e que por isso sejam francamente imanentes a si próprias. Cada escultura ou cada relevo inagura e encerra sua própria história, responde à sua própria demanda consitutiva, não acumula um repertório formal nem se justifica ou se explica em face de uma memória cultural. Por isso um mesmo procedimento – por exemplo, combinar de diferentes maneiras dosi semi-cilindros – pode se prolongar por vários anos, gerando indefinidamente novas possibilidades, sem que isto signifque ascese ou depuração formal. A multiplicidade e a infinidade equivalem à afirmação sempre renovada de um oragnismo singular.
Tal multiplicidade e infinidade remtem á atitude essencialmente experimental do artista, e esta revela mais um sistema, a apresentação do mundo sob a exigência de um universo de problemas estéticos e culturais, do que própriamente o ploimento de uma noção de forma ou estilo. Em Sérgio Camargo tal atitude parece ter redundado num método , que permitiu ao artista lidar – submetendo tudo a um critério puramente estético – com as diversas modalidades de ocorrência da forma no mundo contemporâneo. Método, porque a forma teve de ser resgatada a um fluxo heterogêneo de tantas outra formas convencionais, reconstruída (ou desconstruída – e aí dá no mesmo) caso a caso, sob um ponto de vista essencialmente particular e longe do mito clássico da perfectbilidade, embora seja evidente de Sérgio em comentar a transcendência dos valores clássicos, imerso no terrítório vulgar da cultura contêmporanea.
Nada por acaso, estiveram no centro de suas preocupações questões que envolvem repetição e autonomia da forma. É como se o tempo todo o artista se perguntasse em que condições uma forma derivada ( sob um regime de intensa circulação cultural as formas serão sempre derivadas) repõe-se como inteiramente outra? Daí ser tão importante nesse trabalho o intervalo entre as obras, assim como a necessária incompletude da trajetória – o espaço na escultura de Sérgio não tem começo nem fim, é um continuum, tal como a famosa cadeia de significantes que nunca se encerra. Isto não explicaria, em alguma medida, o fato de sua obra ter se desdobrado quase integralmente como um plano, se conforme se viu?
Desdobrar-se como plano significa entre outras coisas que as esculturas, embora se comprazam em comentar certas estruturas atemporais da forma ( Sérgio, como se disse, parece fascinado pelo vocabulário “clássico” da escultura, de massas, volumes e profundidades) dissolvem-nas por dentro, e com elas sólidos pressupostos formais, como os que opõem interior/exterior, cheio/vazio, leve/pesado, raso/profundo, e assim por diante. Umas de suas formas mais recorrentes, a propósito, é a que se revela nas séries de cilindros deitados, cujos cortes vão se tornando gradativamente mais enviezados, até não reste nada de massa, volume ou profunidade, a escultura se realizando agora como uma virtualidade espaço-temporal, ou um plano lateral contínuo ( o espaço entre).
Mas desdobrar-se como plano, do ponto de vista experimental desses trabalhos, significa acima de tudo viver produtivamente uma condição fragmentária e parcial da forma, adaptando-se à extraordinária variedade existente, recombinando velhos termos sob novos ângulos, prescindindo dos acréscimos ociosos de matéria e dos conceitos totalizadores. Em suma: para Sérgio, um metódico e amoroso desconstruir da própria obra.
Sônia Salzstein