milton dacosta_fase construtivista
17 set_1986 - 30 set_1986
Lógica e Lírica:
Nada mais evidente, a meu ver, do que a perfeição das obras construtivas de Milton Dacosta. E nada mais problemático- ela resulta de um embate com esquema e dados que seriam, a priori, se não inconciliáveis; heterogêneos. De fato o melhor adjetivo para definir semelhante perfeição seria paradoxal: híbrida. Contradições, como se sabe, nunca fizeram mal á arte, a começar pela propria contradição entre pulsão artística e o real. Mas a operação pictórica de Dacosta, no Brasil do final dos anos 50, ainda hoje desconcerta, a um tempo rigorosa e assombrosa. O modo como o artista se impôs uma disciplina pós-cubista do Plano, lutando para atinar com a lógica estrutural do espaço modern, era inseparável de uma carga imaginária que impregnava a ordem da tela com uma densidade inexplicável; inexplicável porque atópica. A solução geométrica da extensão vinha junto com uma intensidade avessa a métricas e limites. Por isto a ordem ficava, afinal, como que incógnita e indecifrável. Os elementos neoplásticos não foram, no caso, simplesmente tomados de empréstimo-foram assumidos pela poética do artista e reprocessados segundo uma fantasia pessoal e intransferível.
O formato mesmo das telas era obviamente inadequado a um projeto construtivo ortodoxo: seria o formato tradicional da natureza- morta, com sua conotação intimista, sua horizontalidade nítida e discreta. Lógico, havia Morandi e o passado “metafísico”do próprio Dacosta. Em princípio, contudo, não haveria idéia mais infeliz do que juntar Mondrian e Morandi- o produto terminaria mera hesitação construtiva ou mais uma intragável contrafação á la Portinari, ou seja, retirantes “cubistas”em cénarios “surrealistas”com mensagens “realistas”etc. Mas não, nada disso. Nessa singular vontade de ordem compareciam na mesma medida, exata e estranhamente, tanto a premência da busca da razão quanto um lirismo singelo do rigor plástico. Coexistiam, indissociáveis, o dilemma sensível da razão e uma sensibilidade reflexive, serializada até, obrigada a pensar e repensar seus percursos e percalços.
Com toda sua clareza e certeza, essas telas acabam portanto enigmáticas. Enquanto o programa de Mondrian transformava até certo ponto o quadro num simples veículo, modulo de uma idéia que deveria se propagar livre e universalemente, indenpendente de suportes, as obras de Dacosta impressionam justamente pela irredutível condição de objetos de arte- coisas voltadas sobre si mesmas, auráticas, algo distantes e refratárias ao comércio com o mundo ao redor; formam assim um todo isolado e denso e, se praticam um equilíbrio assimétrico neoplástico, o fazem para lograr a soberana condição de unidade. Ou, ainda que seja, a condição possível de unidade em meio ao processo de desintegração e indiferenciação generalizado. As manobras mínimas, os cálculos precisos e exíguos, administram o perímetro da tela com aûtentico espírito geométrico; mas surgerem, de maneira inequívoca, construções imaginárias. Vá lá se explicar, estruturas neoplásticas que lembram, como o próprio artista nomeou-as, Castelos: castelos ibéricos, eu diria. Não há como reprimir tais alusões figurativas; também não há como emancipá-las da estrutura para fantasia-las – ali estão, sempre sutis, complexas ou sucintas divisões planares e pronto.
A presença expressive da cor acentuada ainda mais a ambiguidade intrínseca dessas obras. A sua ação pretende ser substantiva, inseparável da lógica planar; trata-se de cores chapadas, sem nuances admiráveis sobretudo pela inteligência construtiva que as preside. Dito isto, é flagrante o seu caráter simbólico. Estamos longe da redução formal ás primárias de Mondrian e sua busca de um estrito coeficiente cromático. As cores em Dacosta conservam a memória da luz rebaixada e dos contrates sóbrios típicos da natureza-morta; até mesmo a radical uniformidade cromática planar que ás vezes alcançava deriva, em última instância, da economia característica daquele gênero.
De um modo mais decidido do que o grande Morandi, entretanto, Dacosta elimina os derradeiros vestígios do claro-escuro e da cor-local em favor de discretos contrapontoscromáticos abstratos. Só que a abstração continua girando na órbita do imaginário-presa a uma certa memória do mundo- e atende a apelos subjetivos irresistíveis. Verificamos, pois, mais uma pecuilaridade: telas construídas, anti-psicológicas, dominadas, encantadas até por uma certa atmosfera, em geral sombria. Nos quadros por assim dizer minimalistas reina talvez um suspense; naqueles em que se equilibram e multiplicam várias combinações de elementos há uma inquietude, uma vertigem, um delírio geométrico quase, que chega a evocar Klee. Ea plasma, sustentar, harmonizar enfim todos os confiltos está a autenticidade e a sinceridade impresíveis do verdadeiro pintor: a qualidade pesada, castigada, do seu óleo contraria a estrutura, dá interioridade e “profundidade” á superficies frontais e chapadas. E a patina da pintura exala aquela espécie superior de luxo que é a antítese do supérfluo. Um vetor expressivo atravessa portanto a ordem e a torna atraente porém algo inescrutável. Assim, ao mesmo tempo em que se aproximam, concretas e atuais, as telas retêm um certo segredo. Daí a resistência, a tensão plástica inesgotável.
O ato de olhar e compreender essas obras pressupõe, nauralemnte, o mesmo duplo movimento que distingue o drama de seu vir-a-ser, a capacidade de deslindar a origem sinuosa e intrincada da ordem. Não há dúvida que o artista procurava responder então ao desafio da razão moderna e sua exigência de plena universalidade. Mas na sua medida ambígua, single e austera, a partir de uma situação forçosamente lateral no sistema da cultura occidental, essas pequenas telas não deixam de rebater de volta o desafio: cabe agora á razão, ao mundo da cultura e á História da Arte, enfrentar a sua lógica intense e decifrar os paradoxos de uma universalidade excêntrica.
Ronaldo Brito