julio villani_ quadro negro
03 ago - 16 set_ 2023
Esboços de troncos e galhos de árvores coloridos ou puras figuras geométricas dispostas em equilíbrio instável? Há um claro espírito de dubiedade nos trabalhos apresentados aqui por Julio Villani. Algo que oscila não apenas entre a abstração e o naturalismo, mas também, por exemplo, entre o visual e o verbal. Sim, pois o artista dá grande importância aos títulos de seus trabalhos, e convida amigos e amigas a potencializar esses sentidos semânticos pedindo-lhes para escrever frases a partir da associação de palavras, às cegas, na ausência das imagens, e incorpora esses textos à exposição. Impera aqui o princípio surrealista do jogo, do cadavre exquis: figuras (gráficas ou textuais) que se montam coletivamente e um tanto ao acaso, porque no acaso – objetivo ou subjetivo – também pulsa a ordem. Uma espécie de ordem avessa.
Nascido no interior de São Paulo, há mais de quatro décadas Julio passou a residir grande parte do ano na França. Bricoleur, monta esculturas a partir de peças encontradas. Engenhocas estranhas e familiares a que chamou, com carinhosa ironia, de Almost readymade. Esse gosto inteligente pela apropriação aparece aqui nas colagens feitas sobre manuscritos, em sua maioria documentos cartoriais do século XIX. Nesse caso, o campo do verbal é o fundo da composição, em caligrafias rebuscadas e estampas que constituem um padrão contra o qual as figuras coloridas, embebidas em tinta a óleo, acrílica, ou desenhadas a crayon, se instalam por contraste. Diferentemente das colagens cubistas de Braque e Picasso, que sequestravam o jornal para dentro da pintura, aqui são as pinturas que invadem o campo gráfico e textual do documento antigo, criando uma ordem sobreposta que transforma o fundo caligráfico em ruído.
Nas pinturas, feitas com tinta acrílica, carvão e caulim sobre tela, em formatos maiores, predominam ensaios de estruturação do espaço, com prismas vazados e transparentes. Chamadas pelo artista de Collapsible architectures, têm espaços organizados por linhas frágeis e campos de cores que nos fazem imaginar construções temporárias, instáveis, impermanentes. E se a clareza dos planos geométricos remete à idealidade do suprematismo, suas cores mais tonais, com pinceladas em faixas bem marcadas, semelhantes às da têmpera de Volpi, conferem a essas pinturas uma dimensão reflexiva, rala e artesanal, mais próxima ao contexto brasileiro.
Essa vontade de estruturação vacilante, que apenas organiza ordens provisórias e imprecisas, tem no “quadro negro” a sua mais perfeita tradução. Ali, no contraste brusco entre claro e escuro, tudo pode se sobrepor, ao mesmo tempo que tende a desaparecer. O acúmulo, a rasura e a submissão de uma ordem à outra instauram um campo de jogo permanente, no qual Villani se sente em casa.
As cenas de queimadas presentes em suas colagens, acentuando a ideia de “natureza ludibriada” – um de seus títulos –, ecoam os tempos sombrios e recentes de desgoverno do país, durante os quais esses trabalhos foram feitos. Contudo, no contexto artístico desse grande Quadro negro de Julio Villani, as dificuldades se redimem na sempre possível ideia de um recomeço. Não como tábula rasa, a partir do zero, mas como esboços pacientes de uma estruturação que sempre busca sua melhor forma. Uma estrutura na qual natureza e geometria não se opõem. E a “vontade de forma” construtiva opera, par hasard, a partir do jogo.
Guilherme Wisnik, 2023
Exposição: Julio Villani: Quadro negro
Visitação: até 16 de setembro de 2023 (entrada franca)
Telefone 11. 3083-6322, e-mail info@raquelarnaud.com
Galeria Raquel Arnaud
Rua Fidalga, 125 – Vila Madalena
imagens da exposição