joão trevisan_ o dorso do tigre

11 nov_ 2023 - 27 jan_ 2024

joão trevisan_ o dorso do tigre

“O tempo é a substância de que sou feito.

O tempo é um rio que me arrebata, mas eu sou o rio;

é um tigre que me destroça, mas eu sou o tigre.”

Jorge Luis Borges, Nova refutação do tempo, 1952

 

A imagem do tigre, em sua indefinição, sinuosidade e força, acompanha meu olhar sobre o trabalho de João Trevisan. É, por sinal, o signo do artista no horóscopo chinês, que tem um tigre feroz tatuado na pele. Suas obras mais reconhecíveis, os Intervalos, apresentam padrões tigrados. O enigmático animal figura também como personagem em curiosas narrativas que intitulam algumas de suas pinturas, próximas à exaustão do corpo, à disciplina e à extrema atenção. No budismo, corrente filosófica e espiritual que Trevisan segue de forma convicta, o tigre é associado à generosidade, à robustez e à sabedoria. Ao caminhar com Trevisan pelos morros que cercam a via férrea sobre a qual o artista dedica parte de seu trabalho em Brasília, durante os dois anos de pesquisa que antecederam essa exposição, me senti acompanhado de um tigre. Silencioso, em guarda, com pegadas firmes e determinadas, ele me assegurava conhecer aquele chão como as listras do próprio dorso.

Esse dorso cambiante, cuja ossatura se movimenta sob uma pele vibrante com silhueta quase fixa, como montanhas em extrema presença em um horizonte silencioso, assemelha-se às pinturas de paisagens de Trevisan, expostas pela primeira vez nesta ocasião. Seu enquadramento vertical se conecta a tradições artísticas orientais correlatas com o budismo, como os biombos sanfonados e pintados com longos leitos de rios, somado à possibilidade de refletir sobre o horizonte na verticalidade. Diferentemente do planalto em que se assenta Brasília, cidade onde o artista nasceu e vive, suas paisagens se referem a lugares introspectivos ligados a memórias pessoais, como a perda do pai ou viagens familiares à serra. Montanhas agudas se erguem e criam, sob sua proteção, um lago plácido e contemplativo, formando refúgios mentais imaginados. Convidam para uma caminhada silenciosa a explorar o que está atrás de uma montanha, para o descobrimento de um paraíso perdido. Como esse oásis, presente, mas nem sempre visível, baila sinuosamente o tigre, sobre as cordilheiras que mimetizam seu dorso, em lâminas de água que tremeluzem com o caminhar certeiro.

Nas também inéditas pinturas monocromáticas, Trevisan se debruça sobre os múltiplos modos pelos quais a luz e a cor podem ser captadas pelo olhar, sobrepondo e justapondo blocos cromáticos em profunda análise da obra escrita e pintada de Josef Albers (1888-1976). Pedem a visão oblíqua do tigre em caça, enviesada e precisa, revelando não somente detalhes inesgotáveis sobre o comportamento da luz, mas pistas sobre si mesmo, em um espelhamento de suas inquietações sobre tempo e percepção na fatura dos trabalhos. Dispõe seus corpos verticais e cobre-os com uma velatura em cor que, por essas preocupações e configurações, aproximam os trabalhos de naturezas-mortas, sejam elas as de Josefa de Óbidos (1630-1684), pelo véu luminoso e encerado da técnica à la candela, ou de Giorgio Morandi (1890-1964), pela luz embalsamada, pastosa e que tende à monocromia. A expansão luminosa e a irradiação das cores de uma pintura introspectiva deixam os monocromos abertos, a ocuparem o espaço livremente, sem a madeira que contorna os Intervalos.

Regidos por ritmos silenciosos, perceptíveis apenas através da aguçada percepção dos mansos sismos que as patas felinas imprimem ao andar sobre a terra vermelha, seus já ocorrentes Intervalos apresentam-se reformulados por novas inquietações e experimentações em encáustica. Neles, pinta corpos verticais – similares aos dormentes de madeira que o artista utiliza em suas esculturas de grandes dimensões – em repetição intervalada no horizonte, agora com larguras e espaçamentos regulares. Dentro desses corpos que se repetem mesmo em suas diferenças, percebem-se as acuradas pinceladas verticais com que Trevisan orienta não somente as cores, mas as relações com a luz através da fatura da pintura. As cerdas do pincel modelam minúsculos montes e vales de tinta a óleo que se assemelham às singulares ranhuras das madeiras, cicatrizes dos dormentes de suas esculturas, ou à textura cintilante dos pelos no dorso de um tigre banhado pelo luar prateado.

O silêncio, a disciplina e a busca de um pensamento limpo materializam-se no processo de pintura que utiliza o tempo como material elementar: cada trabalho tem em torno de trinta camadas sobrepostas, da preparação à velatura final, com dias de intervalo de secagem entre cada demão. O cuidado também é praticado na madeira cautelosamente posta, compondo um elemento tridimensional que nega ser moldura, ao passo que acentua o peso da obra e reitera sua introspecção. Como um devoto que comparece diariamente ao mesmo templo, Trevisan desenvolve, a partir da repetição, um método de pintura que continuamente se esmera, adentrado na selva, embrenhado na fatura.

Em meio a trabalhos noturnos, surgem pinturas sobre papel, também apresentadas pela primeira vez. A decisão do contraste sobre uma superfície clara e porosa, oposta ao que usualmente produz, apresenta-se como uma expansão de uma gramática visual pelo seu inverso, de um complemento pela oposição. Enquanto os Intervalos indagam sobre a capacidade do material conter luz, ou estar ativo para a interação com ela, os papéis inquirem sobre o desvanecimento de uma luz já ausente, de uma penumbra rasante. Não solicitam ao observador um deslocamento em torno da obra a desvelar suas múltiplas possibilidades de diálogos luminosos, como o tigre que circunda e vigia a presa, mas se aproximam de rastros de uma fotografia elementar, focada em registrar o movimento da luz durante um breve instante. Deixam-nos com o enigma da intersecção da densa tinta a óleo preta com o papel extremamente leve, como o inaudível andar felino mesmo com pisadas firmes. As formas espectrais, difusas e arrastadas corroboram tal efeito: sombras por onde escorre o dia e adentra o luar granulado, frestas de luz que queimam e desbotam uma superfície. Nesses trabalhos, Trevisan propõe uma velatura que não sela pintura nenhuma, senão o próprio suporte – ou mesmo a própria luz.

A insistência de Trevisan em argumentar sobre silêncio, tempo e luz através da matéria é como a do tigre que doma a sua própria inquietude, em eterna mudança. Põe-se totalmente presente por estar meditativo, onde a troca silenciosa ocorre através do olhar e a linguagem corre em sensível mudez. Antes impenetrável, agora vulnerável, o tigre espera atenta e respeitosamente o tempo intransponível das coisas, assistindo suas transformações à espreita, à meia-luz. Congrega força e leveza ao se firmar perante a luz que cega e a escuridão que avança sem medo. Embalado por canções de renovação, revela suas memórias ainda não construídas, tão reais quanto seu dorso, cuja sinuosidade convida o afagar da mão. Ver o silêncio agudo e tocar a luz doce é ter a mente clara como o prado.

 

Mateus Nunes

Curador

 

 

Nota: O título da exposição é uma citação-homenagem ao filósofo paraense Benedito Nunes (1929-2011), em livro homônimo publicado em 1969. Nunes se refere a um estado oscilante da cultura ocidental assente sobre alicerces instáveis ilustrando-o como o dorso de um tigre.

imagens da exposição