iole de freitas_

18 set_2002 - 16 out_2002

iole de freitas_

A plena forma – Paulo Sergio Duarte

 

Se fôssemos procurar uma linha “evolutiva” da escultura de Iole de Freitas teríamos diante dos olhos um desenvolvimento que parte das articulações de fios de arame, tubos de cobre e borracha, pequenos serrotes, pedaços de gaze e outros tecidos, formando desenhos no espaço, quase caóticos, do início da década de 1980 (cerca de 1982-84), passariamos pela movimentação em curvas das grandes telas e laminas metálicas, construindo corpos de movimentos complexos, frutos do contato direto com a obra escultórica de Tatlin. Encontramos, depois, a presença das primeiras superfícies planas, nas grandes laminas de ardosia de recortes irregulares, intervindo no interior de uma obra onde as grandes curvas ainda predominam. As investigações pareciam desdobrar-se uma de dentro da outra, na busca de articulações que reclamavam por mais espaço na medida em que o redefinir de sua situação de caixas vazias- como são, em princípio, todas as salas de exposição – para receptáculos dos encontros de curvas de diferentes materiais, às vezes, interceptados pelos planos das pedras.

Vemos, como ponto de partida, uma audaciosa exploração de materiais de aparência precária, subordinados a movimentos instáveis, que, posteriormente, crescem em dimensões, ganham clareza construtiva nas suas articulações e grandes curvas, sem que isso implique em perda de complexidade. As superfícies ganham muito espaço, tanto as curvas de telas metálicas como as de chapas de cobre, e se enroscam, e se superpõem, interceptadas pelos longos arames de aço que tanto colaboram para unir fisicamente os diversos materiais, como atuam como componentes estruturais da linguagem, contrastando no seu perfil esguio com a turbulência das curvas que se multiplicam em todas as partes das grandes esculturas. Quem não tivesse notado as lições aprendidas com as esculturas do artista russo preferia logo uma associação mais fácil: a tradição barroca brasileira. E não deixavam de ter certa razão, em que pese este atalho nacional impedir o enfoque de outra filiação não menos presente em nossa história: a do construtivismo.

As experiências mais recentes, com as placas de policarbonato, articuladas no traçado contínuo dos tubos de aço inoxidável, surpreenderiam mesmo aqueles que vinham acompanhando mais de perto o trabalho da artista. A tal da linha “evolutiva” sofria uma evidente descontinuidade da consistente exploração do lugar arquitectónico realizada em 2000, no Centro de Arte  Hélio Oiticica, no Rio de Janeiro. Mais uma subversão contemporânea da noção de obra monumental fora ali realizada. Sua ocupação de todos os espaços de exposição por um único trabalho impunha uma outra releitura dos conceitos de todo e de parte, de interior e de exterior, de contínuo e de descontínuo, já bastante explorados pela escultura moderna, a partir, somente, da pura experiência sensorial que exigia do corpo do espectador que acompanhasse as múltiplas trajetórias possíveis da escultura. Da mesma forma que a escultura percorria os ambientes e se lançava sobre a rua, éramos convidados pela obra e reinventarmos a sua travessia. 

Tomamos,então, contato com uma unidade que se entregava por partes, no entanto, sem nenhum indício de fragmentação. Exterior e interior dos ambientes percorridos estavam relegados pela fluidez do fio condutor dos tubos. Tudo, agora, sem as torções violentas ou a turbulência das curvas anteriores. Apenas curvas suaves construindo o longo percurso no uso de apenas dois materiais: as chapas de plástico e os tubos de aço. Tudo isto, aliado a uma evidente positividade, restaurava elementos modernos por meio de um relacionamento com o lugar tipicamente contemporâneo ou, se quiserem, pós- moderno. A escultura de Iole transformava o espaço do Centro de Arte Hélio Oiticica no seu próprio penetrável.

Surge  do desdobramento dessa experiência estes trabalhos que buscam uma descendência decididamente moderna, não discutem o lugar, e trazem o elogio do plano e o despojamento de estruturas elementares claramente construtivas. Estas esculturas nos despertam , também, para o falso guia que poderia acompanhar uma linha “evolutiva” no trabalho. A obra se deixa contaminar por momentos diferentes do seu próprio tempo, e este teima em não se comportar segundo alguma lei de “evolução”da forma. O trabalho interage com seus diferentes momentos, e se transforma. Iole, quando usava o medium fotográfico, ainda na década de 1970 e primeiros anos da década seguinte, explorou o rebatimento da imagem sobre o espelho. Não entremos em maiores digressões sobre as relações com a imagem do corpo que as fotos suscitaram. Basta lembrar que há pouco tempo, já na segunda metade dos anos 90, a artista realizou a transposição das fotos para grandes superfícies de vidros foscos. As lâminas, inclinadas, encostadas contra a parede, ofereciam uma nova leitura daquelas imagens dos anos 70. A participação ativa do novo suporte e a sua semitransparência era determinante- junto com a nova escala- no redimensionamento da obra que havia sido apresentada no tradicional papel, cerca de vinte anos atrás. Verificamos a presença de elementos absolutamente planos, na obra de Iole, não se restringiu às lâminas de ardósia das grandes esculturas.

Agora o plano se reintegra à obra com o estatuto privilegiado: seus recortes são o próprio centro da questão escultórica. Quero arriscar a seguinte hipótese: as atuais esculturas, tão depuradas e simplificadas quando comparadas com experiências anteriores, lançam-se no mundo libertando-se de qualquer alusão direta ou indireta ao corpo que, de certa maneira, sempre esteve presente nos trabalhos anteriores de Iole. Para isso incorporou o plano vítreo do policarbonato, recortou-o segundo investigações da pura forma e, acima de tudo, eliminou os fantasmas das imagens fotográficas que poderiam habitá-lo, e também os movimentos que poderiam evocar os exercícios da artista que um dia teve na dança o centro de suas preocupações estéticas.

A corporeidade dessas esculturas é somente aquela da plena forma. Resta esperarmos pela surpresa de seus desdobramentos.