iole de freitas_

25 ago_1999 - 02 out_1999

iole de freitas_

LEVEZA DO CHÃO1

 

Mudanças significativas ocorreram no trabalho de Iole de Freitas nos últimos anos: a artista reduziu procedimentos e materiais, simplificou a sintaxe, deixou de lidar com o espaço como uma totalidade indivisível para pensá-lo através de uma dinâmica de relações e trocou a escala intimista pelo confronto com um espaço anônimo e impessoal. Mas essas mudanças parecem derivar de outra, fundamental: do próprio gesto, que gradualmente foi se isentando das premissas da espontaneidade e das razões do inconsciente para manifestar-se cada vez mais a partir de suas potencialidades construtivas e de uma noção de disciplina.

 

É claro que o gesto sempre foi elemento decisivo no trabalho de Iole.  Mas até o final dos anos 80 ele aparecia como espécie de expressão autônoma e primordial da vida subjetiva, pressionando para brotar desvencilhando de coerções externas, o entorno apresentando-se a ele como limite extremo de uma contínua expansão espacial. Era assim, por exemplo, com os inúmeros “relevos” produzidos naquela década, transparentes e inflados pela ondulação suave das superfícies, como se resultam de respiração funda e prolongada, a cada golpe apenas renovando seu perpétuo moto interior. Foi surpreendente, então, quando em 1989 vieram as peças de grandes dimensões e porte estrutural: sinal de que o trabalho mostrava-se aos poucos permeável à situação que o envolvia, de que passava a se reconhecer numa encruzilhada de determinantes para além de seus limites.

 

É preciso notar que ao contrário das anteriores, essas peças levavam a artista a realizar estudos prévios de relações de peso e equilíbrio e a antever a operação de fixação delas no espaço; eventualmente, ela teria mesmo de realizá-las no local de exibição. O gesto pressupunha doravante uma disciplina, um cálculo, atitudes parcimoniosas e razoavelmente planejadas de dispêndio de energia de alocação de forças. O trabalho parecia considerar, afinal, que não seriam quaisquer gestos, quaisquer emanações expressivas que teriam eficácia quando o espaço assomava como um agente poderoso e relativamente fora de controle, quando se desatava, enfim, a face pública e institucional deste espaço.

 

Curiosamente, as primeiras obras estruturais de Iole lidavam com a nova situação como se quisessem corroer todas as determinantes “externas” – institucionais, arquitetônicas, culturais, etc -, mais do que defrontá-las. Os gestos incidiam violentamente sobre as superfícies, gerados como que por propulsão, de sorte que tudo se via assimilado ao recesso orgânico e auto-referencial do trabalho. E, não obstante a enorme circulação energética em jogo, em vez de abrir-se a um espaço externo, essas obras acabavam ou incorporando-o à sua natureza mais íntima ou expulsando-o mediante a expansão esmagadora de sua própria presença. Era como se o gesto de resistência do trabalho ao regime de funcionamento do espaço público e institucional não pudesse se manifestar senão como recusa abismal.

 

Pouco depois a obra assinalava nova mudança, que a exporia ainda mais a variáveis externas. Por volta de 1994-95 ela já tinha avançado para além da parede, com telas e folhas metálicas desdobrando-se do plano numa cascata e tubos, planos espiralados e gordas concavidades, arranjados precária e audaciosamente em encaixes e junções. Parecia então na iminência de se descosturar e de se deixar levar pelo chão, numa complexidade de superfícies descontínuas evoluindo interconectadamente. O controle da artista sobre a forma com que essas superfícies percorriam o espaço era sensivelmente  reduzido; além disso, não havia mais um eixo único de ordenação presidindo o molejo do conjunto dos volumes e superfícies, mas uma multiplicidade de movimentos eclodindo simultaneamente.

 

Os últimos trabalhos de Iole são a culminação desse processo. É verdade que em “Território Vazado”2, realizado há pouco no Museu de Arte da Pampulha, ela já havia reduzido drasticamente procedimentos de junção e costura e poupado quase integralmente os materiais de uma manipulação direta. Mas agora a artista leva a um horizonte nunca antes testado a questão da expressão, tratando-a nessas esculturas com desconcertante realismo, expondo-a duramente à inércia do ambiente, à ação invisível mas penetrante de suas forças institucionais. De fato, os materiais nunca haviam se mostrado tão vulneráveis, deixando à vista uma espécie de alienação de origem, a marca de uma indiferença expressiva e oferecendo tenaz resistência estrutural ao gesto. O trabalho parece ser absorvido, numa palavra, a idéia mesma da exterioridade, de uma esfera exterior indiferente aos revolvimentos mais íntimos e sutis do corpo. Entretanto, ele nunca pareceu dominar tão plenamente as passagens e intercâmbios entre interioridade e exterioridade, entre as noções de íntimo e público, e resistir tão ferreamente à cooptação de todas as ideologias que impregnam o espaço de sua inserção pública.

 

Cabe notar, por último, que essas esculturas trazem a atitude inédita de relegar os materiais a suas próprias potencialidades, de tal modo que o movimento por elas desenvolvido deixa de ser alho emanado da intenção de um sujeito; o gesto aí é imanente, já não pode ser compreendido como “resultado”de uma intenção que possa lhe ser anterior. Elas se erguem, assim como uma natureza altamente estilizada, evoluindo com a desenvoltura e a economia energética próprias dos objetos naturais (e a esse respeito não é preciso apontar a evidente analogia delas com a paisagem), mas imunes aos riscos de uma visão naturalista do gesto e do próprio corpo. Imunes aos riscos de institucionalização precoce, de auto-complacência e banalização sentimental que espreitam obras fundadas no gesto ou na expressão. Não há dúvida de que aí se lida com as condições de possibilidade, na situação contemporânea, do gesto ou da expressão emancipada. E nestes não haverá nada de sintomático ou reativo: designam também um movimento interno de produção.

 

Sonia Salzstein

 

  1. A expressão é emprestada ao título de uma das obras que a artista apresentou na exposição Teto do Chão, no Museu de Arte Contemporânea, Porto Alegre, em 1994.
  2. O título surgiu num trabalho apresentado na mostra Transparências, ocorrida em 1996 no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Depois veio designar o projeto realizado para o Museu da Pampulha. Como os dois trabalhos são semelhantes, mas diferem segundo as peculiaridades dos respectivos espaços em que foram instalados, tudo indica que o título pode abrigar uma série, ou ao menos um conjunto indefinido de trabalhos com as mesmas características de base.