iole de freitas_
05 jun_1990 - 20 jul_1990
Delicadeza traumática
A insistente presença do corpo no trabalho de Iole de Freitas vem se desenvolvendo como um dos mais radicais pensamentos anti-representativos da arte brasileira contemporânea. Em seu trabalho o corpo foi seguidamente objeto de uma série de investigações tanto quanto ao meio utilizado, quanto a natureza do processo de investigação.
Inicialmente Iole se utilizava de fotografia e registrava suas investigações através de procedimentos metafóricos/alegóricos. Seus trabalhos atuais estabelecem uma nova medida qualitativa e quantitativa: o processo agora se dá sem o apoio de uma estrutura de linguagem; é a ação direta do corpo, transferência da energia das ações corpóreas sobre o material; ao mesmo tempo que a escala dos trabalhos impede e anula qualquer aproximação psicológica e intimista, problematiza qualquer interpretação metafórica/alegórica. Não é mais possível reduzí-los a um esquema qualquer e neutralizá-los, Agora estamos diante de uma massiva aglutinação de ações corpóreas, sem qualquer esquema prévio, a não ser o contínuo acrescentar uma ação sobre a outra, numa transferência incessante de energia.
Em cada uma de suas esculturas a energia continuamente registra as infindáveis torções a que um corpo é submetido. Trata-se de uma verdadeira dança através dos materiais. São torções anônimas e velhas conhecidas. Diárias e cotidianas. Numa oposição radical e qualquer idealidade clássica, esses corpos não buscam nenhuma unidade formal, não se estruturam em um núcleo que os organize, querem expandir como forças incontroláveis e ameaçadoras. Corpos sem limites, virtualmente ilimitados. Energizados. Crispados. A conturbada seqüência gestual que estrutura essas telas metálicas, as diferenças de transparência, os movimentos antagônicos, tanto subvertem a lógica planar moderna quanto o volume clássico. Conversão pura de energia, turbulentas e traumáticas somatizações, não propiciam nenhuma alusão e estão distantes de qualquer ilusão. Não se associam às formas biológicas e muito menos às formas funcionais dos objetos industriais. Anti-aerodinâmicas e perfeitamente aéreas, anti-biomórficas e plenamente imbuídas do princípio de expansão dos processos vitais, essas esculturas são registros das variações rítmicas da energia.
Não é possível enumerar as ações que estruturam essas esculturas. Tenderiam à dissolvência e no entanto resistem. Historicamente poderiam ser vistas como conseqüência do limite a que chegou Lygia Clark nas obras-moles. Nestas, seqüência lógica dos bichos, Lygia já apontava dissolução da obra, caminho que seguiu coerentemente; mas as obras-moles eram um impasse: o esquema formal impedia a expressão da energia, que Lygia já entendia como plasticidade, no sentido da energia psíquica, livido. A obra-mole estava presa ainda a um modelo teórico, ou melhor, ela era um modelo teórico, demonstrativo, o que, de certa maneira, limitava sua potencialidade escultórica. Nos trabalhos de Iole o que está à frente é a urgência das pulsões que vão formando sua própria lógica, vão se estruturando segundo o seu próprio movimento incessante num processo em que ao final nada resta em potência, tudo está atualizado e consumado como fato especificamente escultórico.
Imagino uma possível seqüência plástica, não cronológica e superposta para essas esculturas: as Nikes helenísticas, o heroísmo michelangelo e a action painting de Jackson Pollock. Penso na Vitória de Samotrácia como síntese de calma e turbulência, no panejamento que adere ao corpo e esvoaça, na simultaneidade de efeitos contrários, nas sutilíssimas variações das tensões. Sentimos também a paixão michelangesca; o elemento catártico, um furor incessante, a contínua doação de energia e a beleza monumental que nos faz calar, O transe pollockiano é aqui ainda mais evidente. O trabalho é puro registro da ação sem começo, meio ou fim, intenso processo de transferência das pulsões corpóreas. Assim como nas telas de Pollock, o corpo está plenamente presente nessas esculturas, totalmente transferido e integrado. Não podemos isolar um momento qualquer dessas esculturas e dizer: aqui está a origem, foi daqui que tudo começou. O referencial inicial do sujeito em relação ao objeto não obedece nenhuma orientação posicional, não há alto nem baixo, é uma dança sem coreografia e sem parâmetros que vai se somando quase ao paroxismo.
Trazendo em si o corpo e sua história, essas esculturas nos impõem com sua presença uma sensação de ambigüidade, que varia de intensidade conforme a escala do trabalho. Embora em todas nada exista de figurativamente agressivo, elas nos transmitem uma espécie de delicadeza traumática, uma turbulência que afinal é tranqüila. Talvez o que elas nos revelam não seja nada mais que o ambivalente impulso que nos leva em direção ao outro: que pode ser ao mesmo tempo objeto de desejo e fonte de ameaça.
Paulo Venancio Filho