hércules barsotti_unidade sequencial

16 jun_ 1984 - 28 jul_1984

hércules barsotti_unidade sequencial

O ESPAÇO PELA COR

Ronaldo Brito

O enunciado é simples: aí estão alguns exemplos de expansões, horizontais e verticais,de uma figura geométrica. Para o olhar, no entanto, o problema é complexo e não permite termo de solução. Na medida em que não se apresentam sobre um fundo neutro, a priori, essas expansões estão sempre acontecendo no espaço. À tela enquanto lugar dado, se substituem planos de cor que determinam, à força de suas operações, o seu próprio perímetro. Não existe, portanto,espaço pronto, mas atos de espacialização. Cada obra institui, por assim dizer, o seu espaço e só pode fazê-lo em tensão com o ambiente ao redor. Que dizer: a partir de uma escolha ideal – as evoluções de uma certa figura geométrica – se produz uma situação concreta. A percepção, já engajada como corpo, deve acompanhar as manobras de vir a ser desses espaços. E, no limite, a esperiência é a de sentir e compreender o próprio Ser do Espaço, esquecido tanto por suas representações meramente técnicas como pelo inevitável descaso da circulação cotidiana.

E, para nossa felicidade, mas também para nossa perplexidade, esses espaços aparecem pela cor. A liberação moderna da cor significou exatamente isto: o reconhecimento do seu estatuto fundante na mesma proporção do desenho que até então a aprisionava. E ainda assim, décadas depois de Matisse, resistimos a espacializar pela cor, seguimos atralados ao seu antigo valor de atributo, metáfora ou, pior, adjetivo. O que nela há de indecidível e intraduzível assusta, com certeza, nossos velhos hábitos causalistas; ou simplesmente contenta nossas vagas fantasias, o que vem a dar no mesmo. Para ver os novos trabalhos de Hércules Barsotti, porém, é necessário enfrentar resolutamente a cor, tomá-la como autêntico poder de estruturação. Porque o seu impacto sensível é inseparável de sua intenção construtiva.

 

Ao raciocínio cabe, pois, percorrer todas as mediações até encontrar essa difícil união, Num certo sentido, inicialmente, vemos uma operação quase discreta: a cor é pensada como cálculo, a quantidade vai determinar a qualidade. Existem, obrigatoriamente, problemas de cor – cada trabalho atraca um deles, põe em evidência interrelações precisas. Ou seja, a cor não é sugestão, é contexto. Mas, e é um mas de verdade, as cores aqui têm linguagem própria, não demarcam apenas o deslocamento dos planos, nem apenas os qualificam, efetivamente os constituem: não há como pensá-los sem elas. Mas ainda, arrisco, sobretudo elas permitem ao trabalho eludir o idealismo que leva boa parte da arte construtiva a cair na paradoxal categoria do rigor amorfo. Tampouco, claro, voltamos ao truismo da cor com tônus, vida das formas. O que se impõe é a afirmação do seu caráter decisivo no ato de perceber.

É possível falar, assim, tanto em peso quanto em intensidade para situar a cor nessas obras. Aqui ela objetiva, projeta o quadro enquanto coisa no e do espaço; ao mesmo tempo o singulariza e sensibiliza, na acepção forte do termo, para nos propiciar a apreendê-lo como movimento e, em última instância, aparecimento. Não há nenhuma busca “simbólica” da cor e sim a inteligência de suas relações; há contudo, a sua presença autoônoma, com o seu conceito e sua efetividade. Em suma, o diálogo entre cores não é somente relacional, também é corpóreo.

O que poderia passar por exercícios geométricos vem a se mostrar, portanto, uma aventura de especialização. Como todo verdadeiro artista construtivo, Barsotti parte da conquista moderna do Plano, é nesta dimensão intelectual, não psicológica, que atua. No caso, o Plano se oferece uma leitura até certo ponto literal, aceitando o desafio do meio ambiente. No conjunto da obra este é um momento dos mais inquietos, com os trabalhos visando uma presença, entre o real e o virtual, no mundo. É evidente, o objetivo não é encetar uma ação direta no real ou propor uma participação física do espectador; tais postulados são estranhos ao artista. Uma investigação acerca da visualidade define o horizonte especulativo do trabalho: como se dá o olhar é a pergunta limite. E a sua tarefa ininterrupta seria a de criar obras que revelem e demonstrem a percepção para si mesma, que sejam instigantes o suficiente para levá-la a reviver os seus dilemas básicos.

 

A lamentável Op-Art queria a todo custo excitar nossas retinas já tão cansadas pelos sucessivos estímulos da poluição visual reinante. Nada mais distante das serna e perpétua dúvida que caracterizava o seu propalado, porém inocente precursor, Josef Albers – a percepção em estado de reprocessamento constante, traçando e retraçando o seu percurso essencial, o mesmo “quadrado” sempre outro, as cores mais diversas às voltas com as mesmas profundas questões. A obra de Hércules Barsotti me parece perseguir essa espécie de dúvida, atenta às tênues tensões da ordem com a mesma metódica urgência.