hércules barsotti_proposição emblemática
22 set_1981 - 20 nov_1981
Uma estrutura-limite, em série, parece algo paradoxal. Como desdobrar um esquema no estágio máximo de tensão? Todavia esse conjunto de obras pretende ser exatamente isto- a série problemática de uma estrutura-limite. O mesmo aqui não é simples, muito menos dado: é condensação, experiência, história. Nesse mesmo devem estar presentes necessariamente todas as combinações e transformações, passadas ou futuras, pouco importa. A pequena amostragem teria, assim, um objetivo amplo: a de operar uma redução fenomenólogica do trabalho, colocando entre parênteses o residual e anedótico, para então apresentar a ideia essencial. No caso, uma idéia irredutivelmente visual.
Essas obras procuram uma certa distância do conjunto da produção anterior para evidenciar
a inteligência e a origem do método. Assumem, em certo sentido, um próposito cartesiano- o discurso do método. Apenas, sendo também elas produções, existindo em meios a seus conflitos, não resultam em campo neutro, em nenhuma espécie de Universidade do saber do trabalho. Querendo resumir a lógica da obra, tornam-se ao contrário lugares particularmente densos, intensos, saturados. Pôem á prova toda questão, submetem a sua intuição original ao teste da realidade.
Porque, em último instância, há a convicção sobre a origem intuitiva do trabalho. O seu discurso construtivo deriva de uma intuição intelectual de tipo Husserliana – a ordem só pode sair de ordem. Trata-se então, com todo rigor, de reconstruir a ordem primeira, destruir e superar o que a ela se sobrepõe e a oculta. Na raiz está a certeza fenomenólogica de que a visualidade possui ordem própria, imanente, com leis específicas. Até certo ponto, toda arte construtiva supõe, a meu ver, implicitamente pelo menos, a existência de tal ordem. Ela e só ela pode garantir a integridade que essa arte reivindica, seu desejo de presenca plena. Se não, as obras terminariam sendo agenciamentos mais ou menos empirícos, sem fundamento. A arte construtiva consciente é quase obrigada a apostar cotidianamente na racionalidade intrínseca da percepção.Nessa razão mergulha sua sensibilidade.
A combinatória de cores acontece portanto num segundo nível, discursivo, possibilitada pela intuição. Claro, a combinatória é constitutiva à obra, não um mero instrumento. Mas como método, não pode ser desligar de sua origem e discorrer isolada. Aí aparece o cartesianismo positivo da série atual – aos que se perdem nessa trama de cores e nela se esquecem, o trabalho reafirma agora seu caráter emblemático, exibe a estrutura-limite que o preside e à qual incessantemente remete. O contato inteligente com essa força estruturamente, essa mobilidade indefinível e no entanto definitiva, eis o que esses objetos de cor propõem. Daí a mesma estrutura em todos eles: ela é a estrutura mesma. Isto não significa que as numerosas outras combinações sejam menos corretas ou que o artista tenha enfim encontrado uma fórmula. Por favor, não. E sim que o valor de cada obra está em sua organização cromática e esta reporta sempre a intuição fundante. Só na órbita dessa intuição podemos calcular nosso voo. Os apelos sensíveis imediato, as sugestões figurativas, convém colocá-los sob as sugestões figurativas, convém colocá-los sob suspeita- dispersam a pura percepção em devaneios secundários.
A demanda seria então a de um olhar ultra-ativo mas radicado em si mesmo. Um louco olhar fixo capaz de acompanhar o jogo relacional de cores, sentir a inquietude desse objeto em revolta contra o seu passado representacional e que se deseja agora presença autônoma, pronto porém a voltar a si para indagar sua gestalt básica, da percepção, o problema decisivo. Por que, ainda segundo a lógica construtiva, esse poder estruturante do percepto não seria apenas inefável introspecção mas também módulo da ação social.
Basta lembrar a História – no temário básico construtivo a visualidade sempre foi pensada ora como economia simbólica, troca social, ora como veículo da indivdualidade metafísica.
As duas tendências se batiam, às vezes conviviam ou se misturavam, a rigor entretanto eram inconciliáveis.
Talvez pareça exorbitante relacionar imediatamente o trabalho de Hércules Barsotti a essa problemática. É obrigatório porém. Na própria história de sua produção as Proposições Emblemáticas trazem a marca desse conflito. Arquétipos lógico-perceptivos ou estruturas – comunicacionais, elas vivem sob ameaça constante de serem inteiramente absorvidas pela espirirtualidade tradicional da arte ( que apesar das aparências, segue em vigência) ou tragadas por uma empiria que as reduz a sofisticadas informações visuais. Em meio a esse debate, somos levados a olhar esse emblemas, a analisar seus efeitos.
No limite, pois, a materialidade simbólica e histórica desses trabalhos está presa a essa questão que, sozinhas, não podem resolver e nem decidir. Apenas, como algums poucas outras produções do projeto construtivo brasileiro, têm o direito de exemplificar. Um trabalho como o de Barsotti carrega consigo a questão construtiva no Brasil, sua força e seus problemas. Trinta anos de operação inteligente levam essa força a esses problemas a um estágio-limite – estruturas – limites colocam interrogações-limites. Olhá-las, pensá-las em seu procedimento específico mas também em seus efeitos concretos, é nosso dever.
E nosso prazer.
Ronaldo Brito, setembro 1981