geórgia kyriakakis_mesmas e outras
07 ago_2003 - 03 set_2003
COMO APRUMAR O MUNDO O poeta Manoel de Barros ensina que para apalpar as intimidades do mundo é preciso saber: a. Que o esplendor da manhã não se abre com faca b. O modo como as violetas preparam o dia para morrer c. Por que é que as borboletas de tarjas vermelha têm devoção por túmulos d. Se o homem que toca de tarde sua existência num fagote tem salvação e. Que um rio que flui entre dois jacintos carrega mais ternura que um rio que flui entre dois lagartos f. Como pegar na voz de um peixe g. Qual o lado da noite que umedece primeiro. etc. etc. etc. Desaprender 8 horas por dia ensina os princípios.1 Geórgia Kyriakakis dedica-se a esse desaprendizado dos princípios e das obviedades que são atribuídas ás coisas do mundo. Ela cavoca o interior dos sentidos, a mola propulsora do funcionamento dos detalhes que compõem a natureza, a vida, desafiando-as carinhosamente. E, assim, no processo, busca intimidade com todas as coisas. O pensador francês Pierre Lévy diria que a artista virtualiza a vida via seu trabalho, utilizando o conceito de virtualização como atitude que se opõe à aceitação concreta e estável da materialidade das coisas.2 A virtualização na obra de Kyriakakis relaciona-se à problematização das coisas e de seu comportamento. A artista expõe as contradições, as sutilezas e as subjetividades que cada coisa do mundo abraça em sua própria existência. Na verdade, em suas obras, ela busca ir de encontro á concretude do mundo – para sentir o peso, o volume, a carnalidade do que está dentro, do que está perto, do que está à volta de tudo. Primeiro, ela pôs fogo em papéis. Suspendeu a queima previamente a sua desmaterialização, recompondo com o material uma nova organização, uma estranha beleza. Depois queimou palha de aço e fez
perfis nas paredes, amontoado o pó para criar pequenos volumes, relevos que se formam ao longo do tempo, construídos em minúsculas “prateleiras” fixadas às paredes .” Na série Graphos, ela perseguiu a forma e o corpo delimitado por uma poça de parafina derramada sobre o mármore. Desbastou o mármore seguindo minuciosamente seu desenho e, então, voltou a preencher seus vãos com gesso. O que, à primeira vista, parece uma operação numérica que se equivale a zero, se trata na verdade de uma generosa proposta de reorganização do mundo. Geórgia Kyriakakis disseca e tenta controlar a forma produzida pelo acaso para compreender suas abrangências e seus limites. A artista quer organizar o mundo para habitá-lo com certa satisfação. Quer resgatar-lhe a dignidade, buscando para tanto entender seus meandros e atribuir-lhe doses de equilíbrio. Eis porque ela teima em aprumar as coisas, em dar estabilidade e corpo ao que há de frágil e transparente como, por exemplo, o vidro soprado. Volumes de vidro soprado, ora colocados sobre concavidades existentes em caixas de cimento, são preenchidos, nivelando-se com a superfície da caixa, como piscinas naturais que brotam na maré baixa. Em outros momentos, são dependurados do teto em pares desiguais, com a ajuda de uma roldana e um fio de aço, de modo que um jogo sutíl entre seus conteúdos produza um efeito de equalizar seus prumos.4 Nesse conjunto de procedimentos, a artista nos faz rever noções pré-concebidas de força e fragilidade, de equilíbrio e desequilíbrio, de natureza e artifício. É corajoso tentar entender como as coisas acontecem com liberdade. Ver o mundo com o olhar que não acumula verdades ou formulações razoáveis. Voltemos a Manoel de Barros. Ele escreve assim: As coisas não querem mais ser vistas por pessoas razoáveis: Elas desejam ser olhadas de azul – que nem uma criança que você olha de ave. 5 É bom olhar o mundo com o olhar de Geórgia Kyriakakis.
Katia Canton