fernando bento_latitude

30 out_2003 - 14 nov_2003

fernando bento_latitude

LATITUDE

 

LATITUDE E CAPITÃES BIRUTAS O Brasil não precisa reler as cartas de Américo Vespúcio para descobrir o Brasil. Mas precisa rever Volpi. Precisa, ainda mais, reviver os penetráveis de Hélio Oiticica. Depois de mergulhar no mar do navegador florentino, perder-se no azul do pintor toscano e seguir o percurso na selva sugerido pelo tropicalista, outro possível caminho para entender o Brasil surge com a série “Latitude”, de Fernando Bento. O que em Volpi é superfície e em Oiticica configura uma célula-mater, em Bento apresenta-se como sistema. Em mar aberto, a muitas léguas da costa firme, entre eclipses e conjunções da lua, Bento segue a nau insensata de Vespúcio. Como o cosmógrafo, ele tenta entender o enigma Brasil.

As cartas de Vespúcio que chocaram a Europa renascentista descrevem o que seria um povo de “epicúreos”: feras disformes que vivem segundo a natureza, que não têm rei, religião ou bens próprios, são péssimos comerciantes e ainda comem carne humana. Confere? O Brasil selvagem de Vespúcio não é, obviamente, o Brasil tosco e religioso de Volpi. Está mais próximo do Éden imaginado por Oiticica, em que a imaginação conduz a um caminho experimental por meio de sensações. Bento está, portanto, ao lado de Oiticica. Se Oiticica, em seus penetráveis de água, propõe o trajeto do pé nu sobre a areia, descobrindo nesse mundo escondido uma possibilidade de autofundação, Bento propõe um sistema de construção para o país à deriva. O Éden de Oiticica é um espaço de circulação germinativo. As “ilhas” criadas por Bento na série “Latitude” traduzem o ritmo dessa germinação. Construídas com linhas azuis, pretas e vermelhas, elas resistem à lógica e ousam enfrentar o oceano caótico, primordial.

O drama não está ausente nessa experiência, fortalecida pela biografia do autor, criado à beira-mar, em Cabo Frio. O artista, na exposição anterior, forrou o espaço da extinta Galeria São Paulo com uma gigantesca tela de infinitos traços de caneta, que exigiu mais de um ano de trabalho e lhe valeu acompanhamento médico forçado (para controlar uma síndrome de movimento repetitivo). Batizou a instalação de “Oceano”. Com ela tentou ver o Brasil pelas frestras, indo buscar no fundo do mar o possível segredo de sua formação. Oiticica queria criar uma linguagem, não importava como ou por que meios. Por sua vez, Bento quer criar um sistema. Um olhar superficial concluiria que essas ilhas resultam de um surto minimalista, serial e monótono. Mas não. Elas nascem do sacrifício de mãos cortadas pela linha, que resiste à fúria oceânica como um barco que não se deixa prender ao porto. Em Volpi, os mastros substituem personagens tragados pela imensidão azul num Brasil que já não se reconhece. Em Bento, a ausência se traduz pelas linhas – e, de maneira trágica, elas formam, involuntariamente, o desenho de uma cruz suprematista na única peça negra, produzida pouco antes da morte de um ente querido. É mesmo impossível conhecer algo sem percepção, mas é tarefa difícil estar atento à constituição dos signos.

Mesmo submetido a um sistema rigoroso de construção, que não admite denunciar por onde passa a linha que prende essas ilhas de madeira e fios de algodão, Bento foi traído pelo inconsciente. Ele bem que tentou entender as contradições deste país barroco, católico, excessivo, em confronto com sua suposta tendência à limpeza formal, a construtivismo calvinista. Ainda não obteve resposta, mas está a caminho. Criou um sistema para traçar as coordenadas dessa terra que emerge dos trópicos em latitude biruta. Nessa maçaroca, muitas naves se perderam pela loucura do capitão. Outras chegaram ao porto. A de Bento seguramente é uma delas.

Antonio Gonçalves Filho