elizabeth jobim_pinturas

11 mar_2005 - 20 apr_2005

elizabeth jobim_pinturas

ARQUITETURAS IMAGINÁRIAS        Luiz Camillo Osorio

 

A opção pela pintura, ou melhor, pela tela é recente na obra de Elizabeth Jobim. Até bem pouco tempo, era o papel o suporte mais freqüente. Com ele, sua linha fluía com mais desenvoltura e a forma arrumava-se quase que por acomodação orgânica. Era um corpo que se expandia e se retraía à procura de um equilíbrio interno. Seus desenhos compunham-se por dentro. Neste deslocamento atual para a tela as relações formais se exteriorizaram e a linha passou a articular planos sem delinear contornos, sem separar figura e fundo, ganhando um ritmo menosmelódico e mais cadenciado.

 

O engraçado, quando começamos a olhar mais atentamente estas pinturas, é que vemos nitidamente que se trata da mesma artista que realizava aqueles desenhos que “desabavam”,1 mas que agora parecem ter se tornado resistentes à gravidade. A tela exigiu um novo vigor da linha. Se por um lado, a linha ficou menos fluente e desenvolta; por outro, ganhou escala e sobriedade. A linha não divide um dentro e um fora, mas constrói planos que se encaixam e se disseminam horizontalmente. Nesse movimento horizontal do olhar, percebemos uma espécie de escrita gráfica que se estende à nossa frente. Tudo se passa na superfície da tela e se comunica com o espaço externo da arquitetura.

 

Nesta medida, há algo nestas telas próximo dos Metaesquemas de Hélio Oiticica. Não no sentido de um desejo de saltar para fora do plano, não se trata de abandonar o suporte; mas sim de se manter nele pela tensão entre forma e plano, como se ela, a forma, estivesse se expandindo, ganhando espaço. Ou melhor, ganhando escala. Como observou a própria artista em uma nota de trabalho, há uma continuidade fragmentada, uma unidade que se desdobra e que inclui o branco de fora. Seus brancos querem ser a parede; não é janela nem um acontecimento localizado na tela, é uma vontade de se expandir, tornar a parede uma parede e um lugar onde linhas se afinam e engrossam, onde a cor vibra como nas nossas retinas quando estas vêem as coisas. Em Elizabeth Jobim, ao contrário de Oiticica, a cor não se concentra para pular fora do plano, mas se articula com ele para ativá-lo e colocá-lo em contato com a parede, com o espaço externo. A cor, que é linha, é ponto de articulação entre o espaço interno e o espaço externo.

 

Essa vontade de expansão, no entanto, é contida por uma vibração cromática que absorve o olhar. As grossas linhas, quase planos, são ligeiramente borradas nas extremidades, desfocadas, e isso faz com que o branco, na sua estabilidade chapada, salte e fique colado na superfície. Por mais sóbrio que seja o movimento do traçado, organizado a partir de pequenos estudos introdutórios, a cor-linha hesita, não tem muita certeza da sua direção, mas segue o seu caminho, articulando plano e superfície, construindo arquiteturas imaginárias que vão se montando aleatoriamente. A relação entre linha e cor é algo singular nestas obras, pois a linha é cor e é sombra, ela se expande em direção ao espaço e o absorve simultaneamente.

 

A hesitação da linha faz com que cada segmento de plano, seja ele aberto ou fechado, dependa da presença do próximo, da articulação lateral que os mantém de pé através de um jogo de encaixes e justaposições. Às vezes, uma linha corta o movimento, rompe a fluência da escrita formal e nos faz lembrar que nem sempre as partes são homogêneas e que a unidade formal não é uma decorrência direta da soma das partes. Há quebras, descontinuidades, amontoamentos e a forma vai surgindo a partir dessa precária relação de fragmentos.

 

Com certo risco de abuso comparativo, gostaria de ver uma outra relação, bastante nuançada, é claro, mas sentida tangencialmente, destas pinturas com a obra de Goeldi. Naturalmente, não se trata de influência, mas de uma afinidade de alma, uma contenção afetiva. Diante de suas obras não há exaltação possível.

 

Há uma economia plástica austera, contrária a todo tipo de afetação sensorial. E o trato da cor os aproxima. Esta relação fica mais clara quando a cor se concentra e se torna um volume cromático, dando ao espaço uma certa gravidade. A cor não é mais linha e se torna massa e peso. Diante destas telas nos vemos atravessados por um certo sentimento de abandono, uma desconfiança de que a realidade (ou a forma) não se entrega por inteiro ao sujeito da experiência. Como diz a artista, meu trabalho pretende nos lembrar disso, de como partes se juntam e formam um todo e, se não podemos juntá-las, fazemos de cada fragmento também um pequeno todo, pois a parte também pode ser uma morada. O mesmo sentimento pode se revelar diante de um guarda-chuva de Goeldi, que em uma noite fria e solitária acaba se tornando uma morada possível. E ele se torna uma morada principalmente quando recebe uma cor que nos dá acolhida, um ponto de calor, que

absorve inteiramente o olhar.

 

Ao fim e ao cabo, parece que nos deparamos aqui com uma relação singular de fragilidade e firmeza. Não obstante a certeza que conduz o rolo de tinta sobre a tela, ela não retira do gesto um travo de insignificância existencial. Mesmo que haja estudos prévios, estas pinturas não respondem a um projeto, não sabem sobre o seu devir. A pintura se faz sem saber exatamente o porquê da sua existência. Neste não-saber que se faz, ou melhor, que vai se fazendo, há uma possibilidade de sentido que independe do querer. A forma não é auto-suficiente, não mantém uma esperança metafísica na capacidade estruturante do logos; mas tampouco se abstém diante de uma vontade, por mais mitigada que seja, de organizar o espaço à sua volta. Neste jogo de construção e entrega, a pintura de Elizabeth

Jobim vai abrindo o seu caminho.

 

1 Título do texto de Paulo Venâncio Filho para o catálogo da exposição de Beth Jobim no Paço Imperial, Rio de Janeiro, entre 17 de março e 19 de abril de 1998.