elizabeth jobim_

19 mar_1997 - 19 apr_1997

elizabeth jobim_

DESENHOS QUE DESABAM

Como é possível hoje, um desenho que se pretenda natureza-morta se a desatenção com as coisas se intensifica cada vez mais? O pouco que resta daquele interesse prolongado- interesse que diverge cada vez mais das tendências atuais da arte- não é capaz de emprestar suprema importância à representação de um arranjo prosaico de objetos comuns. É preciso uma insistência obsessiva na presença das coisas; investir nisso todo o esforço de um fazer artístico elaborado, para que daí, despretensiosa e casualmente, resultem, como neste trabalho, “estudos” compulsivos do mesmo tema e pinturas com um ar de “fim-de-semana”. Tal é a paradoxal ambição poética deste trabalho: empenhar o alto saber histórico da pintura na irrelevância banal de uma coisa qualquer que se quer ter para si, desenhando sem parar.

Desenhos que, ao visar a pintura, insistem em recolocar a possibilidade da natureza-morta. Neles é como se a figuração fosse absorvida pelo processo que a expulsou, e o desenho voltasse de trás para frente, refigurando a abstração. Novamente a solidez e a integridade das coisas presentes, simples e prosaicas, se impõe imediatamente aos sentidos e resistem a transfiguração abstrata. A certeza vacilante e imediata que domina a tensão plástica das formas e das linhas ;e perseguida através de uma execução virtuosística.

Entretanto, seria um equívoco ver o trabalho apenas como recuperação de um gênero específico e so. Esgotar-se-ia na origem uma deliberação inquieta e incomum que, há mais de uma década, dirige-se a certa tradição pictórica moderna um tanto depreciada e aparentemente sem continuidade, esquecida. Pois os desenhos de Elizabeth Jobim carregam a marca da temeridade: cada um deles é uma afirmação da irrevogabilidade da tradição e também da fatalidade do seu desabamento. Dilema que uma talentosa obsessão incorpora à lúcida aceitação de um projeto artístico. Se estes desenhos de meros tubos de tinta amassados e retorcidos surpreendem, é porque restituem ao datado uma atualização integral, não-redundante e contemporânea.

O desenho se vale apenas da linha. Só ela, confiante e incerta. Com esforço, se amparando, ergue figuras, apoiando umas nas outras, empurrando umas contra outras, na tentativa de evitar o desmoronamento das formas. A cada momento a incerteza precisa ser desenhada pela fluência da certeza. Tubos podem se tornar corpos- que também só podem se apoiar neles mesmos-, a escala cresce e o desenho se agiganta até o derradeiro esforço que o virtuosismo pode sustentar. Tudo então desaba, volta a se reagrupar, levantar e desabar. Chega-se a pensar se os desenhos não saem diretamente dos tubos junto com a tinta e, num movimento contrário ao tempo, retornam para dentro dos tubos, para… recomeçar.

Disto resultam naturezas-mortas em tudo opostas à serenidade, quietude e estabilidade tradicionais do gênero. Agora, surgem retorcidas e contorcidas, instáveis e cambaleantes, resultado de um exercício de intensidade, de concentração e cansaço diante dos mesmos objetos, dentro das mesmas quatro paredes do ateliê. Cada desenho é um experimento de virtuosismo da incompletude, inconclusivo. E se refaz sempre um no outro- registro de um “acabamento”refinado entre certeza e hesitação, dos momentos tateantes da busca de uma plenitude frágil, trêmula e indecisa. E a cada desabamento a suprema evidência é conferida à transitoriedade da realização- quando tudo foi levado ao maior esforço, desabou e nada mais resta de pé.

 A ânsia dos desenhos encontra nas pequenas ruelas uma intensa revelação do “acabado”,  que elas manifestam “excessivamente”. São pinturas que ultrapassam o instante do seu término. Estas pequenas versões “acabadas” das naturezas-mortas de Morandi,  “sentimentais” e trágicas, carnais e evanescentes, com um quê de ingenuidade e também de ironia, ao mesmo tempo sofisticadas, toscas e “acadêmicas”, revivem a mesma luminosidade crepuscular e e espectral do pintor italiano, apenas para arriscar ficar a um passo do constrangimento. Não poderia ser de outra forma; somente realizando um caminho tortuoso, de paradoxos compulsivamente repetidos, incorporando a tradição para fazê-la desabar, é que esses desenhos e telas podem pretender uma atenção plastica integral e uma absorção autêntica da experiência contemporânea. Creio que este é o designo renovado do trabalho da Beth Jobim: um virtuosismo feito com a substância mesma dos obstáculos derribados.

Paulo Venancio Filho