eduardo sued_a dimensão moderna do plano

11 mai_1993 - 12 jun_1993

Íntimo Universal

A primeira impressão é de que as telas recentes e Eduardo Sued empenham-se justamente em repensar aquela que teria sido a sua principal conquista desde a década de 70 e que viria a alcançar a potência plena nos anos 80: a dimensão moderna do Plano e tudo o que implica em termos de uma linguagem abstrata, emancipada de ilusionismos, voltada ao rigor e à liberdade de transformação constante. Sob alguns aspectos, mais do que qualquer outra, a obra de Sued assinalava o amadurecimento e o refinamento do pensamento pictórico moderno no Brasil. Deixando para trás as polêmicas locais entre regionalismos e universalismos, ela exibia uma desenvoltura inédita entre nós com relação aos fundamentos modernos, algo que tornava possível, por exemplo, associar espontânea criatividade a lógica da cor de Matisse à estrutura neoplástica de Mondrian. E semelhante operação, longe de diluir, só fazia reforçar uma aproximação, basicamente fenomenológica da arte.

De fato, mal assimilamos, mal adaptamos nossas retinas ao impacto de uma pintura brasileira de orientação construtiva, que conseguia vencer o nosso intimismo, nossa reverência ou nossos delírios provincianos, e já somos convocados a acompanhá-la em registros perceptivos e emotivos completamente estranhos. Nada do que tenha sido dito acerca do caráter inquieto e sutil de sua poética, acerca de sua angústia produtiva, tipicamente cezaniana, deteria o poder (ou mesmo o direito) de evitar certa perplexidade diante deste “outro”Sued. Perplexos estamos, perplexos permaneceremos talvez um bom tempo, mas não a ponto de solicitar uma justificativa prévia para enfrentar as telas à nossa frente. A própria força de sua evidência estética dispensa questões anteriores à sua presença.

E acho oportuno, de saída, chamar a atenção para o sentido contemporâneo dessas telas — elas parecem perseguir um nexo mais relativo, uma qualificação mais “incerta” para os valores plásticos modernos, Se a metáfora for válida, estes seriam ensaios de quadros “quânticos”. A seus audaciosos contrastes cromáticos atonais, à recusa peremptória de passagens e gradações, sucede a busca de “misturas”densas e precisas, toda uma química que permitiria equacionar os registros específicos do ambíguo.

Naturalmente, tal versão por assim dizer hermenêutica da prática da arte, que prima pela reiteração do diálogo crítico com a história, entregue à tarefa interminável de reinterpretação de suas origens, não poderia resultar num impacto estético direto e contudente, aquele que acabou por impor-se como a marca registrada do artista em nosso meio.

Estas obras mais individualizadas, meditativas, começam por se reconhecer objetos de segundo grau, atuando em campo cultural autônomo e diferenciado — nele e só nele viriam a se realizar, a se tornarem efetivamente reais.

Fiéis à sua vocação moderna, as telas dos anos 70 e 80 tendiam de certo modo a desaparecer em benefício de um pensamento plástico que ansiava por sua propagação enquanto projeto estético universal. Por isto, cada uma delas visava a acontecer no universo, “explodiam” na materialidade ideal do Ar, Se agora, pelo contrário, fazem questão de assumir a condição de objetos de arte, coisas concentradas de cultura, não será para descaracterizar o seu espírito moderno e sim recontextualizá-lo de forma lúcida. O que provavelmente sofreu uma alteração significativa foi o sentimento do artista quanto ao destino da experiência estética no mundo atual, desde o seu alcance social amplo até a atração eficaz que faz lograria exercer sobre as pessoas. Assim, como que oferecidas a cada um de nós em particular, essas telas tentariam uma revalorização da presença singular. O fato de extrair muito de seu fascínio da conciliação paradoxal entre o seu volume quase escultórico e a extrema vivacidade cromática de sua superfície, que vai aos poucos se revelando sob os negros, cinzas e ocres, mostra entretanto que  únco aqui é da ordem do relativo, acordo provisório, embora convícto, entre intuições e dúvidas, impasses e aspirações.

A natureza dinâmica do real moderno ficava patente através da simultaneidade dos vários esquemas construtivos, bem como de uma intensidade e uma pluralidade cromáticas que transfiguravam o ambiente. A mesma abertura afirma-se implícita mas decididamente nessas pinceladas descontínuas que, sem promoverem gestos expressivos, repõem a autoria do fazer. Nesta fase de recolhimento, Sued coloca um acento grave sobre a ética da pintura: em última instância, todo verdadeiro fazer compreende uma auto-realização. Já o ato perceptivo engaja um trabalho de auto-aperfeiçoamento — os quadros só se entregam ao espectador dedicado, ao longo de uma contemplação que seja também uma interrogação, um debate introspectivo.

A dimensão do tempo, por importante que fosse uma pintura que pretendia cifrar a Atualidade em sínteses complexas e imprevisíveis, passa agora literalmente ao primeiro plano. Afastando-se do puro instante lírico de Matisse, também do tempo lógico do neoplasticismo de Mondrian, a pintura de Sued aproxima-se da religiosidade (na acepção estrita, o cumprimento cotidiano do dever) de Morandi. O tônus sensível da vivência pessoal integra-se sublimada mas fluentemente ao processo de formalização das novas telas. Ao invés de magnetizar o ambiente, elas preferem se converter em “lugares” propícios ao exercício filosófico da visão. Tanto quanto em Morandi — com o travo imponderável do contemporâneo porém —- inexistiria a imagem final da tela. Entre todas as coisas esta possui a sabedoria e assume a responsabilidade de conservar e irradiar todos os momentos, as certezas e os conflitos, de sua produção. Quer dizer, algo do tempo, com história e vida próprias. A perspectiva fenomenológica da obra acaba, pois radicaliza: o seu móvel sempre fora realizar pinturas que, mais do que objetos para o olhar, chegassem a ser sujeitos da visão. Artefatos de cultura tão conscientes, forçados a se reinvestir de tanto saber histórico, as obras de arte contemporâneas correm o risco de arquivar a si mesmas como fontes de erudição. Graças à sinceridade, ao humor ou ao furor de seus lances criativos, eventualmente escapam da esterilidade acadêmica. Mas é a capacidade de reinventar problemas profundos para si próprias — problemas que transcendem quaisquer soluções — o que impulsiona as obras relevantes. Ao que tudo indica, portanto, teria sido nada menos do que imprescindível ao colorista Sued descer a procurar em tons baixos e opacos, em enganosas monocromias neutras, a repotencialização do problema da luz e da cor; e “complicar” o sóbrio virtuosismo de seu óleo homogêneo mediante o emprego reflexivo de veículos diversos, incomuns, um pouco secretos; imprescindível ainda abandonar a uniformidade intelectual de sua superfície em favor de uma pasta de tinta que, no limite do expressivo, compareça positivamente nesse esforço de reespiritualização da cansada e abusada matéria pictórica moderna.

Vacilamos com freqüência, é verdade, entre céticos e maravilhados, diante desses blocos de pintura que vão se dissolvendo — dilema e tensão bem cezanianos — à medida em que os observamos. Ora fizemos a “escultura” do quadro, ora tentamos acompanhar o ritmo irregular das pinceladas e distinguir os inúmeros pontos luminosos que tornam a superfície curiosamente aérea. Esse movimento indecidível, sempre por se cumprir, constitui a Forma Especulativa da tela. E a despreocupação, a familiaridade com que o veterano artista moderno permite-se retomar às vezes a letra de Moradi comprova justamente que não reside aí o núcleo do problema. Vamos nos fartar em descobrir citações — flagrantes de Monet aqui e ali, traços e pistas generalizados de Manet e Matisse — para logo constatar que a alegria proporcionada por esses pequenos achados é fugaz e insuficiente. As últimas telas e Sued convidam a uma experiência mais urgente e, de novo, mais relativa, do que à reavaliação de suas origens históricas ou mesmo à pronta fuição de sua qualidade estética — convidam a uma espécie contemporânea de conversa íntima universal.

Ronaldo Brito