daniel feingold_

07 mai_2002 - 08 jun_2002

daniel feingold_

Impressões do dia

 

Rajadas, fagulhas, descargas, ou algo do gênero, cruzam a tela. Tudo indica que nem o termo pincelada, nem a unidade pictórica equivalente, podem mais designar essas emissões rápidas, entrecortadas e pulsantes em todas as direções. Sejam convergentes ou divergentes – não há como saber -, estes rastros multidirecionais traçam vestígios da

passagem da ação, desenham um intrincado trânsito carregado de energia plástica. E o espaço da tela se transforma numa construção negativa, gestual, expressiva e estilhaçada. A técnica inventada pelo artista é metódica e agressiva; um tracejado em continua fragmentação. O gesto do pintor se reduz praticamente a um comando manual do tipo gatilho, que exige uma execução pulsante, intervalar, cortada, extremamente reduzida nas suas possibilidades plásticas. Esta operação de transtorno visual, que coloca as opções horizontais/verticais num turbilhão calculado, combina um vigor exclusivamente pictórico à uma forma da gestualidade contemporânea, rotineira e universal.

 

Uma combustão irradiate de um antiilusionismo extremo se dá all over. As emissões perfeitamente aplicadas das cargas retilíneas de tinta esmalte são precisas e metódicas lembrando o pontilhismo meticulosos de Seurat. Como detonações certeiras elas estabelecem um campo puramente ótico, forte, determinado, coeso, que se impõe por toda a tela sem exceção e, ao mesmo tempo, constrói uma malha pictórica fechada, um zig zag meta-impressionista, que não deixa o olhar tranqüilo. Trata-se de uma pintura decididamente abstrata e, portanto, estritamente “pública” – nela não cabe nada da existência privada do artista. Observando uma austeridade ascética, despojada de qualquer futilidade e frivolidade, estas telas supõem apenas acontecimentos visuais puramente abstratos, sem figuras ou geometrias, simultaneamente próximos e distantes da experiência comum. Tal uma blindagem anti-gratuidade expulsam qualquer associação extra-pictórica

 

Sempre em conflito, a tela é um campo invadido por ataques divergentes e alternados. As horizontais e verticais, referências tradicionais da nossa posição aprumada no espaço foram pulverizadas. Da mesma forma a grade ortogonal planar moderna se desgoverna a todo momento, desmente os limites retangulares da tela. A pintura tenta vigorosamente escapar do enquadramento ortogonal e busca na sua contínua vibração, um espaço pictórica para além dos limites do quadro. Deseja um suporte que proporcione a possibilidade de um desenvolvimento infinito – um infinito não homogêneo, instável, pulsante, capaz de inúmeras freqüências: infinitamente livre.

 

Disso tudo resulta um impressionismo reflexivo que é impulsionado pela recepção ativa do próprio fazer. Reage e redireciona, em constante análise, os impulsos do dia-a-dia. Cada gesto implica numa resposta ponderada, estabelece um compromisso e, a cada momento, coloca uma proposição em curso. Um esboço constante, auto-analítico, sem dubiedades, violentamente dirigido e orientado, que a vivacidade estimulante do prata manifesta o agora aberto e atual.

 

Estes traços que ricocheteiam nas bordas do quadro poderiam alcançar o infinito. Mas a energia pictórica que se dobra consciente sobre si mesma, vai e volta incessante, exprime um frenesi vital – uma infravibração nervosa constitutiva do mundo contemporâneo. Pois é essa vibração que estas telas parecem captar plásticamente. Aquela vibração que só ao fim do dia, num momento inadvertido, percebemos. Portanto, estas pinturas se assemelham ao olhar do fim de um dia, tornam visíveis aquela contabilidade dos gestos que se reinicia no amanhã.

 

Vemos então uma pintura que, pela primeira vez, busca apreender a forma atual da operacionalidade gestual cotidiana. A desenvoltura da action-painting é aprisionada e luta contra a instrumentalização massiva das ações rotineiras. É, podemos supor, a experiência da pintura realizada de dentro da “jaula de ferro” de que falava Max Weber – a completa subjugação da existência à racionalidade. A pintura extraida da vida reduzida a impulsos rápidos, binários, direcionados num só sentido que a regularidade da linha reta

demonstra. Então, temos a impressão de que o quadro termina como o fim de um dia. Quadros, é claro, sem títulos, apenas verazes impressões de um dia pós-moderno.

 

Paulo Venancio Filho

 

imagens da exposição