cassio michelany_

07 fev_2004 - 20 mar_2004

cassio michelany_

A PRESENÇA DO QUE DESTOA

A concisão e uniformidade de linguagem conquistadas pela pintura de Cassio Michalany não deixam de ser intrigantes na medida em que não estabelecem um padrão ou eliminam a multiplicidade de questões abordadas. Seu vigor encontra-se na diferença extraída da reiteração de um processo, como se, de modo paradoxal, a regularidade operativa indicasse a impossibilidade de repetição.

A estrutura de suas pinturas deriva da simples associação de faixas ou módulos verticais dispostos regularmente lado a lado. A escolha de cores responde a princípios impessoais e objetivos. Trabalhando com esmalte sintético, o artista restringe-se ao mostruário oferecido pelo mercado. De certo, percebe-se que algumas tonalidades são mais freqüentes. O que de modo algum acarreta um privilégio expressivo, pois todas revelam invariavelmente a mesma relação distanciada e trivial do artista com sua paleta. Tomadas em si, não têm nenhuma capacidade de sedução para além das sensações transmitidas conforme as leis da óptica: a tela pintada de azul é tão encantadora quanto a parede de uma sala pintada no mesmo tom. 

Sob esse ângulo, o caráter pragmático da produção de Michalany remete o espectador à natureza das ações cotidianas, cujo “êxito” depende da aptidão para tomar decisões rápidas e imparciais. Neste sentido, a capacidade de racionalização da percepção torna-se determinante para o sossego do dia-a-dia: resolver com argúcia um contratempo pressupõe sua compreensão imediata como conexão inteligível de causas e efeitos. O que não se encaixa nos papéis propostos por essa relação, converte-se prontamente no diferente a ser desprezado.

Em contraposição, é da assimilação positiva da diferença que os trabalhos de Michalany retiram sua potência, e isso sem abrir mão da objetividade e regularidade de suas operações. Em geral, suas pinturas apresentam-se em conjuntos agrupados segundo aspectos semelhantes (cromáticos ou estruturais). No caso das duas séries apresentadas no Gabinete de Arte Raquel Arnaud, a similaridade reside na estrutura ternária dos quadros e no caráter opaco e introvertido das cores. A distinção é dada pelas dimensões e pelas cores de cada grupo. Ambas apresentam em seu desenvolvimento interno seis momentos de permutação. Cada cor ocupa duas vezes as três posições espaciais da tela.

No entanto, a singularidade desses trabalhos é produzida por sutis irregularidades. Observados enquanto conjunto, cada grupo de cores revela um elemento destoante. O cinza não efetiva a passagem sugerida pela proximidade entre o marrom e o tabaco, bem como o preto não serve de elo entre o azul e o verde escuro. Tais dissonâncias cromáticas correspondem àquela presente na estrutura dos próprios quadros, pois o terceiro módulo é ligeiramente maior que os dois primeiros. A existência desses elementos produz uma espécie de ruído capaz de dinamizar o ritmo horizontal do espaço, evitando a passividade e monotonia da leitura causal contínua.

Conseqüentemente, desvios de padrão são incorporados de modo ativo na relação entre as partes do todo, em vez de considerados uma ameaça à integridade do grupo. Neste sentido, mais do que retirar da regularidade a diversidade, Cassio Michalany incorpora o dessemelhante como essencial a lógica de sua produção artística. Lógica esta que não funda leis fixas e que não serve como garantia de nada, uma vez que resta inconclusa e não pode ser transferida de uma série para outra. Não é à toa que o artista expõe os dois conjuntos intercalados de forma uniforme, mas em descontinuidade, nas paredes da sala retangular da galeria. Local que, vale notar, em sua profundidade lembra um espaço de passagem.

Mas talvez o dado mais instigante das recentes permutações do artista encontre-se na instabilidade do papel de destoante. E isso porque a dessemelhança existe apenas se fixado um padrão de comparação. Pelas trocas, este também muda. Por exemplo, num quadro o tabaco assemelha-se cromaticamente ao marrom, no entanto, em outro está situado no terceiro módulo, aproximando-se em sua variação de tamanho a caráter dissonante do cinza, exercendo assim idêntica função. Com isso, esses trabalhos lembram que é a relação com o outro que a presença de um elemento adquire especificidade. Em qualquer grupo ou coletividade, a posição de alteridade não é permanente. A mobilidade a que os indivíduos estão constantemente sujeitos proporciona a todos a oportunidade de atuar, de modo particular, na condição de diferente.

 

Taisa Helena P. Palhares