cassio michelany_

07 mai_1985 - 08 jun_1985

cassio michelany_

Da Cor Como Matéria

Marco Antonio Tabet

 

Frequentemente encontramos em momentos de ruptura a condição do artista que se obriga a fazer da dúvida a busca que alimenta e dá impulse ao seu trabalho, assinalando que a arte não pode simplesmente prosseguir consumindo e disecando até o osso os seus próprios pressupostos. É interessante observer o notável desenvolvimento de toda uma geração de artistas norte-americanos que iniciando suas atividades de pintura terminaram por abandoná-la em prol da escultura como parte de uma busca de um lugar outro, como se aquele – o de pintura – já estivesse cheio demais. E é interessante notar também a atividade daqueles que ficaram. É o caso dos trabalhos de Cássio Michalany.

 

Inegavelmente são trabalhos que partindo de uma vontade do fazer caminharam durante anos procurando sua própria razão de ser. No amadurecimento  desta questão encontram não propriamente uma resposta mas um modo de prosseguir perguntando no ato de fazer.

 

As superficies definem-se aqui através da justaposição de telas, dando a entender a adoção de uma realidade dual, anteriormente concebida como coisa única e homogênea e que agora, para que possa assumer a existência de um todo é preciso também que se considere as partes, ainda que sejam somente duas. O todo aqui não surge como algo definido mas alguma coisa da qual se tem uma noção.

 

Mesmo que se admita que o todo seja formado por muitas partes, para efeito de observação sistemática, admitir-se-ia que para se atingir algum resultado seria necessário que repetíssemos infinitas vezes o gesto de aproximação de infinitas telas, duas a duas, correspondendo cada superfície obtida a uma parte no interior de um todo compost de infinitas partes. O sentido da experiência consiste na repetição na medida em que seu limite é o infinito. Infinito também seria o pintar mas seu alcance seria limitado, como que dotado necessariamente de um sinal de insuficiência e aí, modestamente, encontramos seu lugar.

 

No momento em que o plano, como entidade maior da pintura, cede lugar á junção de duas telas, como parte deste processo de objetivação, torna-se visível um princípio estrutural, delimitado pelo retângulo encerrado na moldura, no interior do qual existem dois outros retângulos. A este raciocínio daremos o nome de pintura.

 

É na pintura que se situa a questão que nos faz crer que de novo seria necessário requalificar cada um de seus elementos constitutivos para que se pudesse obter um juízo mais completo á cerca de suas possibilidades. Fundamentalmente teríamos assim que isolá-los uns dos outros simulando-se um processo de ampliação de cada um deles de maneira que fosse revelada a sua propria natureza. A pergunta aqui é: do que é feita a pintura? E é na natureza da pintura como matéria que recai a observação. Fica afastada a hipótese de que estamos diante de uma nova teoria da cor.

 

Aqui o que se quer saber é como se constitui a cor obtida em uma condição muito próxima da matéria física que lhe confere um valor específico e concreto. É como se esta pudesse ser encontrada em seu estado natural, ou muito próximo deste, de maneira que melhor evidenciasse suas propriedades, possibilitando assim um olhar diferente não só das cores mas também de todas as outras coisas pois estas possuem “cores”. Desse modo advém a intuição de que o sistema que confere um sentido á pintura é o mesmo que nos permite investigar a matéria eliminando toda idéia de que o mundo sensível se constituiria num outro mundo absolutamente separado do mundo material e sem relações com este.

 

A aproximação de uma cor com outra gera a situação que se quer observer. São sempre duas cores, possuindo qualidades distintas, reagindo de modo diverso á luz. Uma delas se aproxima mais daquilo que chamamos de tinta e que possuí o atributo da cor, pressupondo uma determinada combinação química para sua obtenção; a outra encontra-se naquele estágio mais próximo de sua materialidade (primer): o grafite dissolvido em uma base oleosa, por exemplo.

Ambas são aplicadas sucessivas vezes sobre a tela e de forma tão espessa que chegam quase a se soltar, realçando sua condição física por sua propria solidez, sugerindo na possibilidade de se depender do suporte a possibilidade de também se configurar como superficies auto-portantes.

 

Na pintura gerada pelo encontro das duas superficies fica estabelecido numa espécie de hiato, um lugar específico que não é nem um lado nem outro mas que separa concretamente uma tela da outra. É uma construção á qual se poderia perfeitamente atribuir o nome da linha, recuperando assim o lugar do desenho na constituição daquilo que chamamos de pintura, assinalando um lugar abstrato, aqui tornado concreto, cuja função não é outra que não a de designar o momento em que a matéria corta ela mesma o espaço. É a partir da linha que se recupera um conceito de espaço, ainda que seja apenas e tão somente por meio de uma referência ou um vestígio deste, desde que se aceite a existência de um espaço limitado, finite, pictórico, por assim dizer.

 

Recupera-se um sentido de origem de todo, de partes, das partes constitutivas da matéria, como se de novo tivéssemos que reconstruir as convenções que nos levaram a um determinado entendimento do mundo, “este”mundo, entendido agora como algo obtido através de nossa experiência direta e sem intermediações, relacionando coisa com coisa, elemento com elemento, atribuindo novos nomes e construindo novas associações de maneira que, ao término desse processo teríamos construído hipoteticamente um mundo indeterminado que poderia ser este mesmo ou um outro qualquer na medida em que nós mesmos o construímos sendo parte dele.

 

imagens da exposição