carlos zílio_a pele, o corpo e o tamanduá

11 ago_2008 - 13 set_2008

carlos zílio_a pele, o corpo e o tamanduá

A PELE, O CORPO E O TAMANDUÁ

 

A pintura de Carlos Zilio, na sua paleta, nos seus movimentos, na sua reflexão, solicita certa distância, jamais qualquer empatia efusiva. Distância que pede inteligibilidade e que não se esconde em nenhuma pacotilha metafísica. Como toda pintura contemporânea, exige o contato subjetivo com sua materialidade, muito presente tanto a ação do artista marcada na superfície quanto nos contrastes presentes no uso da tinta e do pincel. Sua generosidade não se dá no encontro fácil, tampouco em qualquer dissimulação ou macetes de procedimentos que divertem e enganam. É generosa porque já na sua aparência se entrega por inteiro. Esqueçamos, por um momento, a erudição do artista e alguns dos títulos de suas telas: “Banhistas”, seguramente uma referência a Cézanne e não a Renoir, ou “Et in Arcadia ego”, a Poussin e Erwin Panofsky. Entreguemo-nos ao acontecimento plástico.

 

A paleta toca em surdina, como o trompete de Miles, mas não é seca como um Martini de Buñuel. Transpira certa sensualidade e inevitáveis associações à cor da pele em muitas áreas da superfície. Muitos desses campos são calmos e preparam o olhar, como um intervalo pitagórico, em consonância com a paleta, para o confronto com as áreas de turbulência nas quais dominam o preto e o branco; ocorrem matizes de cinza que vão se misturar à cor da pele nos movimentos circulares. O discreto refúgio do olhar nos espaços monocromáticos é chamado à agitação, como se encontrássemos juntos privacidade, individualidade, e a ruidosa vida pública, anônima e urbana.

 

Essa oposição, reiterada em diferentes telas, não admite passagens nem transições. A pintura de Zilio trabalha mais na disjunção do que na conjunção, mais com a descontinuidade do que com a continuidade, nela encontra-se mais genealogia do que gênese. A escolha de nos possibilitar essa experiência é visível nas divisões de muitas de suas telas pela linha vertical estruturante. Mesmo quando se apresentam fisicamente como dípticos, trípticos ou polípticos, a articulação entre os elementos tensionados pela força da oposição é poderosa, sempre predomina a sensação de unidade, a presença de um ente pictórico único sobre qualquer relação de complementaridade, não há independência dos elementos entre si. É sempre uma e somente uma pintura. Eventualmente esse modo é contrariado; por exemplo, quando um círculo vermelho – uma “maçã” – se divide entre duas áreas e é segmentado pela linha vertical. Aí o sistema se desdiz: há divisão, transição e passagem, enfim, continuidade; mas reforça-se o aspecto da unidade de cada obra.

 

Depois da pele, há outras evidências da relação da obra com o corpo que vão além daquelas que encontramos em toda boa pintura. As voltas dos círculos são a marca indelével de uma pincelada traçada pelo braço inteiro, distantes das curtas pinceladas de pulso dos impressionistas, e nesse traçado tanto expulsam nosso olhar para além dos limites físicos da tela como o puxam para múltiplos e incertos centros. Mais do que a ênfase planar das superfícies monocromáticas, os múltiplos círculos deslocam qualquer possibilidade de um centro onde o olhar possa encontrar apoio ainda que provisório. Com os círculos e suas braçadas as dimensões das telas passam a ser conseqüências diretas do ato de pintar na escala do corpo. A medida é determinada por um campo para o ato de pintar e não decisão arbitrária para preencher uma parede.

 

Às naturezas mortas evocadas nas figuras dos crânios vem se juntar uma natureza viva, vivíssima na sua forma pictórica: o tamanduá. Mas nem por isso a paleta se abala, mantém sua serenidade e discrição apesar da figura esdrúxula que se infiltra nessa pintura suportada por rigorosa reflexão. Há uma anedota biográfica para a presença do tamanduá: era o bicho de estimação do pai de Zilio quando criança, no interior do Rio Grande do Sul. E o tamanduá brincava descendo o corrimão da escada dos avós do pintor. Mas a palavra “tamanduá” não designa somente o mamífero latino-americano comedor de formiga e cupim; usa-se também para nomear uma grande mentira. Mas não é isto que o artista está nos mostrando? Isto não é um tamanduá da mesma forma que o cachimbo de Magritte não era um cachimbo. Maçãs, crânios ou tamanduás descendo escada, caindo ou se enrolando nos círculos, hoje, nos interessam porque são pintura. Zilio escolheu e constrói seu destino: essas telas materializam um dos capítulos de mais de quarenta anos de prática artística e trinta anos de pensamento pictórico.