carlos zilio_
09 out_2003 - 24 out_2003
Pintura, em suma.
Nos suas mais recentes telas e desenhos o trabalho de Carlos Zilio reapresenta a consistência substancial e a identidade forte que atingiu nos últimos anos. É uma confirmação que se atualiza através de uma voz afirmativa, fluente, estabelecida num plano de serena autocompreensão da qual extrai um força ainda não revelada. Mais e mais a confiança no gesto não se conforma ao espaço pensado, intelectualizado de antes, com o qual de certa maneira agora rompe. A pintura passa a se desenvolver decididamente num vigoroso movimento gestual circular repetido que é um fechar e abrir, um pulsar/desenrolar, que faz sentir com força a superfície na sua materialidade própria. A fisicalidade da tela irrompe nesse enfrentamento. Se percebe até mesmo uma eloqüência na distensão/expansão pictórica que encontra satisfação ao ultrapassar os limites (históricos, físicos e mentais) do intimismo, que é tanto o do ambiente de ateliê quanto da pintura de cavalete.
Não é apenas a dimensão material, concreta da tela que se amplia, também uma segurança interna que não se intimida, menos introjetada e ensimesmada. Uma não poderia ocorrer sem a outra, sem falsear uma verdade artística, e este é um momento particularmente decisivo da pintura recente de Zilio. Percebe-se imediatamente: os quadros respiram de outra maneira, o fôlego se ampliou, pode e exige um espaço maior. A escala de agora não representa só grande dimensão física, está impregnada de uma
necessidade interior. Curioso é que ao passo que a tela aumenta o modelo paradigmático, o alter-ego da pintura de Zilio, Barnett Newman, recua, e aparecem a figuras modernas de Matisse e – uma surpresa! – Picasso. E dos dois, especialmente, aqueles quadros de grandes dimensões, A Dança e mais ainda Demoiselles D’Avignon. Com isso ficou a margem o píncaro do panteão de Zilio: Cézanne. Por que? E por que Picasso, só agora? A resposta que encontro está na confiança, na decisão, na certeza picassianas. A grande tela não é um espaço virgem e não se vai ao encontro dela desarmado. É preciso a decisão picassiana para se livrar de um estado de coisas, tal como ele fez na Demoiselles D’Avignon. E tal como ele, naquele momento, Zilio agora também experimenta resolutamente a ultrapassagem da pintura de cavalete. Então, retroceder a Picasso, depois de estar a par de toda a pintura pós-expressionismo abstrato, revela mais uma vez um momento instrutivo daqueles singulares descompassos históricos da arte brasileira.
Simplificando, a equação pictórica se deslocou do estrutura intelectual (Cézanne, Barnett Newmann) para uma necessidade gestual decidida (Picasso).
O gesto libera, toma a extensão toda do braço, exige um envolvimento corpóreo, e a pintura como que se dá conta de que o espaço franqueia aquilo que só pode acontecer nele: um movimento mais amplo que tem a escala do corpo e convida-o a mover-se livremente através da superfície. A circunvagação planar é matisseana e o negro dos círculos picassiano, energético (Círculos lembram ciclistas, e então Iberê Camargo). Mais e mais fica evidente um desejo de transitar livremente pela superfície da tela – um desejo
mais sensório, menos intelectual, mais empírico, menos conceitual. O ir e vir dos círculos que se desenrolam conduz uma dinâmica plástica anteriormente desconhecida, inibida até. O espaço bidimensional deixou de ser dominado pela busca de um elemento catalítico e emblemático, um signo determinante, concentracionário, exclusivo, que tanto marcou alguns momentos da pintura de Zilio. Desaparece agora a oposição entre elemento forte e o espaço mais dependente. Desaparece também uma certa hieraticidade minimal, sem que a fidelidade à escolha cromática (mínima) seja rompida. As mesmas cores persistem inalteradas, mais entranhadas na pintura, mais trabalhadas na sua materia, mais pictóricas por assim dizer. Na superfície surge uma nova intensidade, freqüente e inquieta, os toques e pinceladas enfatizam um envolvimento sensorialmente ativo, próximo, tátil. Se a escala aumentou, a distância entre tela e espectador diminuiu, ficou mais próxima, mais envolvente. A nervosidade que a superfície apresenta contraria qualquer apreensão totalizadora, ficamos presos a movimentos e vibrações. Está em curso uma outra temporalidade operativa, mais descritiva do fazer. E o tempo da execução se torna mais visivel, mais sugestivo, mais plástico, ausente a intemporalidade minimal que ainda marcava certos trabalhos. Agora a pintura quer cada vez mais tornar presente aquilo que antes tornava ausente. Visíveis são as marcas e o tempo da ação, prolongando e dando substância ao tempo de observação do espectador, acrescentando um sabor ainda não percebido na pintura de Zilio. A relação dinâmica entre o movimento gestual dos círculos e a pictorialidade da superfície introduziu um elemento novo e que ainda está em ação, supreendendo. Ainda assim, não se trata de nenhum rompimento, nova fase, ou seja lá o que for. É mais uma freqüência que há décadas, metódica e rigorosamente, vem se testando e experimentando, sem concessões. Pintura, em suma.
Paulo Venancio Filho
* Uma primeira versão deste texto foi publicado por ocasião da exposição de Carlos Zilio na H.A.P. Galeria.