carlos zilio_
08 mar_1997 - 21 jun_1997
A PINTURA E A SUA PRESENÇA
Depois de um longo processo de depuração e progressiva eliminação de determinados fantasmas, processos paródicos e alusivos, a pintura de Carlos Zilio parece ter encontrado seus elementos mínimos e substanciais: estrutura e pincelada. Partindo de uma ambição artística e de uma auto-consciência esclarecida e crítica, devia superar a defasagem do domínio do meio e adquirie maestria, tal uma formação artística intelectualmente desenvolvida que se coloca na posição de aprendiz de uma técnica. Porque ao aceitar esta situação o desequilíbrio percebido só poderia agir como fator de tensão, ora de inibição, ou desespero, de quem se volta para aquilo que uma vez recusou. A pintura era ainda mais uma presença do que pintura. Era, antes, determinação de chegar até ela.
O encontro com a frontalidade é como alguém que encontra uma parede no fim de um corredor. Este corredor pode ser mais ou menos próximo. Não é desproposital que aqui a metáfora do corredor designe uma analogia com a perspectiva e a história da arte. O encontro com o seu fim não pode ser previsto, nem antecipado- toda formulação teórica projetada é incapaz de suprimir o choque, e sofre o trauma positivo da sua realização. Pois esta pintura, de alguns anos pra cá, trata de um choque. Chamo de choque o momento onde o “ser” da pintura não é mais “confortável”e assume toda a sua problematicidade- quando se está diante da pintura em toda a sua extensão frontal e dela não é possível evadir. Enfim, o momento em que a pintura não pode ser mais levada: é ela que leva.
Esse encontro com a parede tornou fatores antes negativos numa poética singular, e cito alguns: a positividade da tensão e da não-influencia, o gosto pelos obstáculos, a insistência da contenção, a fixação do rigor. Nas estruturas dos quadros as barras negras não só delimitam, mas também contém diferentes “cargas” pictóricas. Quando não é ela mesma um elemento de tensão/contenção, extremamente denso e ativo. Assim é também, em última instância, a pincelada. Ela parece ir até onde sua “carga”se mantém ativa, raramente ela se dissolve, pode até mesmo se ampliar numa superfície, toda ela tensionada. O mesmo impulso parece então colocar, no quadro, forças díspares. Dois momentos que esta poética procura exprimir: a pura planaridade espacial e a concentração energética da ação: Barnett Newman e Giacometti no mesmo espaço e tempo. Também Robert Ryman e Morandi, Cézanne enfim- o domínio abstrato do quadro e a consciência concreta do fazer. Foi a consciência dessa dupla ativação o que levou, creio, às experiências escultóricas de Zilio, como contraprova tridimensional do seu problema pictórico.
Esta pintura impõe a frontalidade como algo defronte, colocado diante. Aquilo que está a frente, tal um obstáculo que impede. Por isso imagino a sua importância, no que ela permite exibir integralmente, sem ilusionismos, o esforço da expansão e contenção, estrutura e pincelada. E se algo escapasse por qualquer possível linha de fuga e profundidade, introduziria um elemento de “narrativa”, que o trabalho tanto se debateu para eliminar, de tal forma que velaria a pura literalidade da ação pictórica.
A superfície se constitui como aquilo que há de mais resistente. Porque está lá, incontornável. Então cabe pintar de forma a estabelecer e exibir um confronto. Não deixa de ser uma ironia astuciosa da pintura em verificar desta maneira, frontalmente, uma vocação. O que não quer dizer que Zilio tenha sido levado a ela inadvertidamente. É justamente por ter colocado os seus termos subjetivos é que a poética do trabalho sustentou-se e obteve sua confirmação através do confronto. E agora pode reivindicar a pintura na sua totalidade. Essa consistência do obstáculo que as telas de Zilio reafirmam indica a presença de um olhar fortemente tátil, que reduz a superfície pictórica à parede ou carne. Dessa maneira, os polos cromáticos, a textura da superfície, a forma da pincelada, o tratamento da tela, parecem atualizar um problema ancestral da pintura; a representação do corpo e da pele humana como superfície emanadora da vida, e o inerte, opção, resistente que se reme numa parede. Pois tendo a acreditar que as telas de Zilio, extremamente contemporâneas, não tratam de outro tema do que aquele que há milênios preocupa a angústia do homem: vida e morte.
Assim esta pintura chegou ao termo que visava: manter a si e a presença da pintura. Em tensão.
Paulo venancio Filho