carlos vergara_ordem e caos
10 nov_ 1983 - 02 dez_1983
Há mais de uma pintura nessas telas. Entre o rigor da estrutura inicial em losangos e a interdeterminação do que foi sendo pintado, diferentes pinturas surgiram – acumulando os acasos da mão e do pincel em necessidades da obra. Cada tela é assim, uma aventura de pintura. Nenhuma pode ser tomada como exemplo das demais. Cada uma trata a cor, por exemplo, de maneira diferente. Talvez a estrutura em losangos seja o comum a elas, mas falta a essa estrutura o que surge a seu lado como a essência singular de cada tela: a própria pintura. A estrutura é assim demasiado frágil para caracterizar essas obras. E os elementos pictóricos são demasiado vastos. A estrutura tende a agarrar a pintura, mas não a alcança. Fracassa no vazio que há entre as duas. E a pintura, se tende a cristalizar-se na estrutura, o fracasso é o mesmo. Sobra, espaçada, a própria pintura.
Há assim um desacordo entre dois tipos de olhar em cada uma dessas telas (1). É o que possuem em comum. Há um olhar intelectual, metrificado, senhor da medida das coisas. E há um olhar pictórico, esparramado, anterior á discrimação de contornos. O desafio de Vergara, em cada uma dessas telas, foi fazer desse desacordo um acordo, um pacto entre opostos. Mas sob uma condição: não eliminar esse conflito. A pintura não preenche, assim, os vazios da estrutura. E o desenho, por sua vez, não se dissolve na pintura. Num e noutro caso o desacordo se resolveria. A execução das obras encontraria seu fim na produção de imagens, quando a intenção de Vergara, creio, é apreender na tela o próprio fluxo de imaginação: essa mistura, meio inexplicável, de pensamento e percepção.
Esse fluxo da imaginação é apreendido no mundo visível por um análogo do mundo do pensamento junto com um análogo do mundo da percepção. Ao primeiro corresponde um espaço reticulado e com orientações precisas. Ao segundo, um espaço instável, latente, manchado pela sobreposição de cores e transparências, e com direções que apenas se insinuam. É desse encontro de espaços, desse “choque de olhares”, que surge um análogo de imaginação em cada tela: uma trama que segura dois espaços opostos (2) Um espaço, então, se transfigura no outro, perde sua essência nos acidentes do outro. Há linhas, gestos, na pintura. Há cor e indefinição nas linhas. Como se fossem mapas, viajamos nosso olhar de uma parte a outra de cada quadro. Não se cessa de imaginar junto a essas telas. Uma imagem vem a ser, mas logo se desfaz, surge uma outra, jamais pensada, volta-se a uma conhecida, também se desfaz. Um triângulo maior se forma, um menor toma-lhe a vez, sucedido por um grande losango. Agora (vinda de onde?) é possível assistir à aparição de uma tênue mistura de luz, cor e movimento. Sempre esteve ali? A tela inteira se reconfigura, dissolvendo a sua imagem anterior.
Mas não são apenas analogias (mapas) da imaginação, essas telas. Imaginamos, de fato, enquanto as olharmos. Imaginamos aquilo mesmo que olhamos. Se são analogias, o são do mesmo modo que o mundo do pensamento ( pensar, imaginar, etc.) é análogo ao mundo vísivel, pois de alguma forma também se olha quando se imagina. E mesmo o pensamento puro também se olha quando se imagina. E mesmo o pensamento puro também se faz segundo direções no espaço. Vai de um ponto a outro, ainda que num espaço invisível. Há assim uma passagem entre o mundo visível e o das ideias. Um caminho de mão dupla: olhar e imaginar.
É o miolo dessa passagem que Vergera trabalha. Nas suas telas o olhar imagina, e a imaginação olha. Cúmplices um do outro, colocam a questão: é possível olhar um quadro sem imaginá-lo? Pois o que se faz, quando se olha um quadro, senão percorrer caminhos semelhantes aos que são, aqui, riscados com método? O que está em jogo nessas telas é um dos fundamentos da pintura. A impossibilidade de sua transmutação absoluta de imagem em objeto. E se é verdade que a pintura de uns vinte anos para cá perdeu seu quadro e seu esquadro, que de caixas para imaginar, encaixilhou-se no espaço físico, também é verdade que com isso recalcou um de seus impulsos mais vitais, pois a pintura não sobrevive sem o direito à imagem. A volta à tona do recalcado é sempre torta. Se faz em cacos e retorcida. Talvez seja esta a razão de ser do que vem surgindo como um novo estilo internacional em pintura. Mas a questão de Vergara nessas telas é outra. O direito à imagem, aqui, não é motivo. Sua ação pictórica não reveste a tela com fabulações do sentido. Está antes interessado na cuidadosa investigação de um problema fundamental da pintura: a transfiguração recíproca de olhar e imaginar. Cada uma de suas telas, é assim , um momento, mas também um experimento, desse pacto transfigurador que faz os olhos imaginarem e a imaginação de ver.
Alberto Tassinari
Notas
- Empresto esta ideia do texto de Rodrigo Naves sobre Vergara, onde ele descreve, sucessivamente, esse desacordo como uma condenação, um choque, e um duelo de olhares. Cf. Revista Módulo, n 75
- Essa imagem de “uma trama que segura dois espaços opostos” devo ao texto que Ronaldo Brito escreveu para o catálogo da exposição de Vergara na Galeria Thomas Cohn, Rio, 17 de março a 5 de abril – 1983
imagens da exposição