carlos fajardo_

13 nov_ 1984 - 13 dez_1984

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UM MAR DE COSTAS

 

RODRIGO NAVES

 

Acontece às vezes de o mundo sofrer uma arbitrária mudança de escala. Os deprimidos, por exemplo, são íntimos dessas ruas majestosamente largas que os reduz à insignificância de um paralelepípedo. Algumas distâncias tornam-se impercorríveis e há profunidades  das quais não há retorno possível. Os espíritos proustianos, por seu turno, conhecem um tempo às avessas. Um passado movediço, sempre mais distante, a cada nova tentativa de dizê-lo no presente.

Diante destes últimos trabalhos de Carlos Fajardo nós nos vemos transformados em Guillvers interrogativos. Sobranceiros, divisamos do alto alguns pequenos seres que não correspondem a uma expectativa anterior. E a nossa perplexidade é simetricamente oposta à atitude dominante em que nós vemos. A posição cavaleira, em vez de facilitar o entendimento, somente evidencia o ridículo da situação. E não é só o deslocamento da disposição tradicional dos objetos de arte que produz esse mal-estar. Ou a tão decantada ausência de base ou pedestal. Há trabalhos acadêmicos que não lançam mão daqueles recursos e no entanto ocupam o espaço como gordo cisnes, não demandando nenhuma discussão quanto o seu lugar. Basta pensar nas esculturas de Fernando Botero para se ter uma idéia dos inúmeros sofismas contemporâneos. E houve um tempo em que os próprios assoalhos eram uma espécie de artesanato artístico, requintes de marchetaria que enlevavam os passos aristocráticos.

Muito mais que criar embaraços para um olhar acostumado a contemplar coisas de arte que estejam à sua altura, estas peças forjam de fato um lugar problematicamente qualitativo. Qualitativo porque com elas o embaixo ganha conotações de aviltamento, de queda e de grotesco. Problema porque não se trata de voltar ao espaço hieraquizado de Aristóteles- para Fajardo o estabelecimento desse lugar é uma operação transgressiva e não um alocamento que visa organizar o espaço. Aqui cessa a metáfora de Gulliver. Como bem se pode ver, não se está às voltas com homenznhos: homens normais que parecem pequenos pela comparação com uma estrutura muito maior. Lidamos aqui com anões, com objetos que deveriam ser grandes, mas que não o são. Coisas meio nauseantes, pois demasiadamente saturadas, os trabalhos pedem uma expansão que não pode se cumprir.

À primeira vista, as texturas dos materiais empregados chamam a atenção para o que ocorre nas diferentes superfícies. De fato, elas são ocorrências. Os trabalhos são momentos de uma ação que se subordina ao meio em que se realiza. Ao invés de serem o simples resultado de uma prensagem- escondendo a ação que sofreram e apresentando-se como produto acabado-, eles deixam à mostra a resistência que oferecem. Ou então traduzem em sua superfície os fenômenos que ocorrem às costas. Mas se, por um lado, eles dão concretude a diversos momentos, ganhando assim uma presença ativa, por outro, aparecem também como entrave à plena propagação do calor, do som, do odor etc. Como na metáfora da pomba de Kant- ao pensar que seria mais livre voando no vácuo, longe da resistência do ar -, eles procuram uma propagação que os anularia. Todavia, forçam esse busca em função do caráter mínimo de todos os efeitos encubados nas obras. Por esse caminho elas invetam uma dissociação entre os estímulos e seu meio.

Já se vê que, mais que criar um abismo para o olhar distraído, Carlos Fajardo mobiliza todos os sentidos para elevá-los a uma ansiedade máxima. E o lugar dos trabalhos é qualitativo porque o que se realiza ali ganha características de viscosidade: um meio que turva a relação entre os sentidos e as sensações. A matéria converte-se em travo e num peso que impede a expansão de ocorrências que buscam livre curso. O que está embaixo é vil porque não é espírito. Ao contrário, segrega uma materialidade radical imune aos encantos do sublime.

Mas esta discrepância estrutural dos trabalhos gera um outro incômoda. Embora apelando para todos os sentidos ( à exceção, talvez, do paladar), eles apresentam uma discrição extrema. São pacientes em relação à ansiedade alheia. Eles retiram sua força de uma falta de reflexividade absoluta. As superfícies cativam por suas diferenças e no entanto, tomadas individualmente, elas se reduzem a uma homogeneidade irritante. Por trás de uma delicada camada de pigmento azul só há pigmento azul, com a glicerina, com o concreto, com a luz etc. Não contendo nenhuma diferença no seu interior, os trabalhos carecem igualmente de toda e qualquer estrutura, por mais elementar que ela seja. Independentemente da diversidade dos materiais empregados, um traço básico aproxima todos os objetos: o que aglutina a matéria, em cada obra, são exclusivamente as propriedades físico-químicas das várias substâncias empregadas. Para além disso, nada mais as une ou as mantém – nem uma vaga noção de composição, nem um raciocínio oculto, nem um desenho. Empastadas de si mesmas ( para usar uma expressão de Sartre), mas povoadas de rumores estranhos, improcedentes, essas peças atingem uma situação paradoxal: são surdo-mudos que produzem sons, seres sem olfato que exalam odores, coisas sem tato que conduzem sensações.

Desprezando totalmente a pergunta pela sua origem, os objetos de Fajardo situam sua gênese no excesso de sua presença. O que está por trás destes fenômenos é rigorosamente a mesma coisa que se apresenta tão de imediato a nós. E no entanto, em meio a esta solidez impassível, deslizam impulsos não contabilizados que se desgarram totalmente dos materiais que lhes geram – um estranhamento entre o estímulo e sua fonte.

De novo a matéria é um empecilho para o desenvolvimento das sensações, mais que a sua fonte. Alheias ao meio que as envolve, as sensações se vêem às voltas com uma lassidão radical que provoca uma verdadeira abstração dos sentidos.

Nesta exposição, parece evidente, é a própria sensbilidade do sujeito moderno que está em questão. Os trabalhos indicam que existe uma vontade de sentir que acaba por se sobrepor ao mundo. O que o observador presencia diante destas peças é, de certo modo, o teatro de sua ansiedade: um aguçamento dos sentidos que em vez de torná-los mais suscetíveis só demonstra uma impossibilidade de conjugação com o real. Mais ainda, as obras de Fajardo ironizam um comportamento contemporâneo quase dominante (e quase histérico) que quer fazer do sujeito um mero receptáculo de estímulos, ainda que se insista em enfeitar este mecanicismo com cores trágicas, pregando, nas artes uma agressividade e um dilaceramento que não são mais que o desdobramento decorativo de uma impotência servil.

Mas também de nada adianta tentar anular a subjetividade numa época que somente problematizou seu caráter unívoco. Assim, os trabalhos de Carlos Fajardo balbuciam coisas ancestrais. Provocam momentos em que a cor, por exemplo, faz parte de nossa própria carne, porque ela mesma, cor, ainda carrega, indecisa, a cisão entre ser transparência e ser matéria.

Na maior parte do tempo, no entanto, eles riem do nosso esforço para querer reunir um leve odor a uma forma quadrada e translúcida, uma superfície delimitada de espuma à indefinição do tato. Diante deles ficamos emparedados. Cindidos, “frente a um mar de costas” (1)

 

 

*Do poema “O Duplo” do livro Asmas, de Ronaldo Brito.