arthur luiz piza_leveza e matéria

29 ago_2002 - 24 set_2002

arthur luiz piza_leveza e matéria

Leveza e Matéria

Relevos, colagens e gravuras

 

A Intimidade absurda* Na obra de Arthur Luiz Piza, o espaço ocupado pela

gravura, um linguagem explorada pelo artista com requinte poucas vezes igualado na história de seis séculos dessa técnica, inibiu a análise e o conseqüente reconhecimento da poética – tão delicada quanto portadora de sutis problemas – presente em seus relevos.

 

Antes de a obra inventar os relevos, que marcam um momento da arte, no seu aparecimento, a partir de 1958, o trabalho sofreu a pressão da história. De uma

dupla história da arte: aquela que se constituía no Brasil, país de origem do

artista e aquela contemporânea da França, seu país de adoção. Dupla pressão inevitável porque a obra de Piza pertence a esses dois mundos. Desde o início dos anos 1950, havia artistas brasileiros lutando contra o dogma da figura. à margem da moda do informalismo abstrato, e estes constituiam uma pequena mas poderosa vertente construtivista responsável por uma nova densidade da arte no Brasil, com conseqüências estratégicas em todo seu desenvolvimento posterior. Sem o mesmo peso de uma arte em constituição numa nação jovem e de periferia, a França e diversos países europeus assistem às mesmas polarizações: a cena amplamente dominada pela arte informal é contrabalançada por uma arte construtiva tardia. São muitas as semelhanças entre a arte concreta européia e o movimento que começaria a germinar em São Paulo para logo ganhar a adesão de artistas do Rio de Janeiro.

 

Ora, durante todo esse período Piza explora a gravura numa linguagem ainda fortemente marcada pela figuração pós-surrealista. É a partir de 1957, que uma síntese do conflito informalismo versus construtivismo começa a tomar corpo

na sua obra. Síntese, sem dúvida, rara e desconcertante, e mesmo imperceptível àqueles que submetem o juízo estético a doutrinas previamente estabelecidas. O requinte, a beleza e a elegância da sua gravura não escondem a tentativa de encontrar uma solução de compromisso entre a liberdade, tão estimada desde a experiência figurativa quando, à distância, estavam presentes as influências confessadas de Miró e Klee,1 e as exigências

do racionalismo. Se as gravuras guardam até hoje a memória desse momento do trabalho, é nos relevos que uma nova poética torna-se autônoma e se materializa na mais clara convivência entre liberdade e exigência de ordem.

 

Ousemos o excesso de nos fixarmos, por um momento, no detalhe dos relevos. Há

uma vontade de ordem nos pequenos indivíduos geométricos que se elevam sobre a superfície. Nítidos e precisos, grande parte são triángulos, outros quadriláteros, quase sempre de uma sutil irregularidade. Pertencem ao universo da razão que, um dia, pretendeu emancipá-los à categoria de um esperanto visual, signos abstratos capazes de atingir uma elevada média comunicativa independente do contexto cultural. São filhos de uma das últimas utopias estéticas do Ocidente no século XX: o ideal de uma arte universal,historicamente inscrita no mundo da ciência e da técnica. Mas os que temos diante dos olhos não são seres solitários do princípio do mundo das ideias, já nascem como uma pequena multidão convivendo no mesmo território. Seria possível organizá-los em famílias ou clãs: os metálicos e os de papel. Brancos e negros, ora são pintados em laca industrial, quando metálicos, ora são coloridos em aquarela quando em papel branco ou negro, outras vezes estão in natura, quando vale a cor do próprio material. Ordens e classes que se anunciam, individualizando a delicada geometria de Arthur Luiz Piza.

quando o olho cartesiano se detém, artificialmente, na análise dos detalhes.

 

Se abandonarmos o artifício da análise dos elementos isolados, percebemos o

jogo e o movimento que se configuram na totalidade de cada um dos relevos. A pequena ordem dos indivíduos geométricos combina-se e convive com a liberdade das direções, às vezes quase caótica, como numa música carregada de dissonâncias e desencontros propositais. De repente, surgem num ritmo repetitivo, como uma marcha minimalista ocupando disciplinadamente a superfície. Existem também os que se amontoam, no centro da superfície, uns contra os outros, formando uma massa de quadriláteros ou triângulos.

 

Todo esse movimento, que quer contrariar a vontade de ordem residente em cada indivíduo geométrico isolado mesmo quando os elementos estão distribuídos aleatoriamente, afirma um sistema coeso de configurações. Às vezes gregários, apresentam-se unidos e se contrapõem num conflito produtivo; outras vezes, ligeiramente afastados uns dos outros, guardam a distância necessária para “respirarem”. Nesse movimento, existem os relevos que contraem e os que expandem o espaço. Apesar da

semelhança apontada nos entes geométricos, não funcionam somente como módulos, têm algo da série e da repetição, e, ao mesmo tempo, desmentem o sistema. Pertencem a um léxico visual preciso e, simultaneamente, dele se emancipam não se prendendo a nenhuma gramática previamente estabelecida. Talvez seja ir longe demais, mas arrisco

dizer que a sístole e a diástole das figuras geométricas que movimentam o espaço nos relevos construídos sobre as superfícies ásperas dos tapetes de fibras vegetais, particularizam uma poética de Piza intimamente ligada à existência humana. Sem cair na tentação de uma comunicabilidade banal, dignificam, na forma, a tríade isolamento/ agregação/ conflito, pressupondo sempre uma coletividade dividindo um território.

 

As experiências com cores sem oposições cromáticas violentas, o elogio da delicadeza, realçada nas operações de corte e recorte do papel, e os inúmeros exercícios com aquarelas são os desdobramentos alegres, livres de maiores angústias, de soluções formais encontradas pelo artista que sabe, como poucos, sofrer a pressão da história e dos movimentos artísticos, mantendo a independência e um elevado grau de individualidade da sua linguagem, numa época em que diariamente se decreta a morte

da modernidade. O ser moderno e suas contradições vivem e dominam absolutos a obra de Piza. De que modo esta obra pode se fazer presente no mundo contemporâneo e seus traços de hiper-modernidade que já apontam para uma pós-humanidade?

 

Experiências estéticas, como as suscitadas pela obra de Piza, exigem o receptor que não teve violentadas suas fronteiras entre o íntimo e o público e que conserva acesa a virtude de saber contemplar sozinho a obra de arte num mundo que todo dia recalca essa atitude. O trabalho pede a fruição delicada de sua própria delicadeza: uma intimidade absurda. No interior do jogo brutal e violento do cotidiano, sua inteligente lição talvez seja esta: mostrar, desde já, que seria possível construir um mundo com valores e regras diversos deste que nos está sendo imposto.  Paulo Sérgio Duarte.

Rio de Janeiro, junho de 2002.

 

1 Arthur Luiz Piza: la gravure d’abord. Propos recueillis par Gérard Sourd. In: Nouvelles de l’Estampe. N° 159. Paris: juillet 1998.

 

* Leia o texto completo no catálogo da exposição: Arthur Luiz Piza – Relevos 1958 – 2002. curadoria de Paulo Sergio Duarte. São Paulo; Porto Alegre: Pinacoteca do Estado; Museu de Arte do Rio Grande do Sul, 2002.

 

imagens da exposição