antonio manuel_sombras e cintilações
25 out_1990 - 17 nov_1990
Sombras e Cintilações
Desafiador e inquieto, Antonio Manuel investiu sempre uma carga constante de agressividade em seus trabalhos. Não foi o único, no entanto, foi dos poucos a dimensionar essa situação de desconforto diante do medo. Esse desafio foi o núcleo do seu trabalho, Reagia ao contexto provocando-o. Mas como não era estritamente uma atitude reativa e sim constitutiva o traço da agressividade permaneceu como uma manifestação de inquietude e insatisfação. Como certos provocadores trazia na provocação uma dimensão do afeto, embora avessa a sentimentos e boas intenções, mostrava certos impasses da revolta, o conflito em se auto inflingir, desnudar-se no Museu, expor a opressão exibindo o oprimido, conflito que se por um lado era ético carregava um afeto espontâneo e direto, uma compaixão agressiva. Essa situação permaneceu como um traço latente em sua pintura, Já em um trabalho realizado no morro da Catacumba indicava o desenvolvimento da sua poética em sua transposição para a tela. Este trabalho, Frutos do Espaço (1980), poderia ser visto ao mesmo tempo como uma experiência espacial e também pictórica: os elementos em ferro, esculturas com linhas, se desenhavam e se imprimiam na superfície do morro. Virtualmente transparentes traziam a superfície do morro para dentro de seus contornos. Enquadravam partes do morro, pictorizando-o. Dentro das estruturas construtivas, se atualizava, por assim dizer, a favela ausente, a estrutura espacial que antes ocupava aquele lugar. Esses “frutos do espaço” também revelam feridas no espaço. Em um trabalho de 1983, Vaga-lume, realizado no mesmo morro da Caracumba, as lanternas, que à noite, distribuidas entre as pessoas, lançavam fachos de luz na escuridão e no espaço físico do morro iluminavam também o espaço da memória coletiva e individual. Vagava-se pelo morro como quem sai a procura de vestígios, traços apagados e esquecidos, brutalmente esquecidos, ordens, vivências e cintilações que se cruzavam no espaço e no tempo. Além de um trabalho de arte era também algo que se poderia chamar de reurbanização poética.
A pintura de Antonio não abandonou esses impasses e conflitos. Redimensionou-os dentro da experiência pictórica. Se ela retorna a princípios geométricos, a uma certa ordem pré-estabelecida, é porque esses princípios e essa ordem sempre estiveram no trabalho, correspondem a uma experiência acumulada e a uma dinâmica da sensibilidade. Para Antonio essa ordem é intensamente problemática e está em constante transformação; ela é a ordem caótica e concreta, injusta e perversa, da nossa grande cidade selvagem. Traduzé-la é uma ação de múltiplas intercessões, direções e eixos em movimento. O elemento geométrico é também, e principalmente, concentração de sentidos, evocações, presentificações da crueza e do lirismo da vida. Só que o elemento inicial em Antonio não são as linhas, cores, é o espaço; mas o espaço está concentrado na célula, não célula biológica, mas célula geométrica com a dinâmica imprevisível do social. Ela prolifera, invade e determina o espaço. Tem o movimento da favela, progressivamente vai ocupando o espaço, povoando-o até a saturação. E suas primeiras telas os elementos eram poucos, respiravam num amplo espaço; lentamente vão proliferando até a sufocação, até tornar o espaço irrespirável. Se há partes do quadro em que a tela aparece nua é porque aí o lirismo não pode ultrapassar; a crueza da tela também é crueza da existência, refratária e anti-lírica. Aquilo que o lirismo não pode transpor nem pacificar. E seria falso, inautêntico ultrapassá-lo. O percurso da pintura de Antonio é uma historia sintética e evocativa da memória e da atualidade do espaço que vivemos.
Suas telas atuais sugerem a ultrapassagem de um ponto de saturação, onde tudo se consumiu e é preciso recomeçar. Então o trabalho se volta sobre si mesmo e sobre o artista, situação que Antonio chama de “realismo”, isto é, o trabalho se transforma numa nova realidade, exige uma nova realidade. Agora os elementos que aparecem, o martelo e o alicate, se introduzem na ordem geométrica, aparecem como sombras, recortes, e se sugerem alguma agressividade, também demonstram que não estão ali, são sombras e cintilações, e por isso revelam o aspecto ameaçador que cerca qualquer objeto que pode ter seu sinal invertido de instrumento de positividade para instrumento de negatividade, que para o bem ou para o mal pode destruir uma ordem. Então o trabalho retorna ao seu começo para novamente se transformar. Se a autêntica espontaneidade de Antonio Manual pode ser vista como um limite, demonstra também uma incessante inquietude e uma grandeza que é a do provocador que vai se tornando sábio; provoca a si mesmo.
Paulo Venâncio Filho