antonio manuel_

11 nov_1999 - 04 dez_1999

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Fluido Labirinto

As telas recente de Antonio Manuel parecem cumprir um percurso geométrico paradoxal, apresentar uma espécie de labirinto fluído. Os seus elementos abstratos se combinam menos por encontros do que por desencontros, menos por transições do que por oposições, como se virasse ao avesso a geometria para chegar a um autêntico saber contra-geométrico. E a tal ponto que, às vezes, acabo ingenuamente me perguntando se a tela pronta não viria materializar um contrassenso: um impasse bem sucedido.

 

De qualquer maneira, para um artista romântico na acepção filosófica do termo, que sempre lutou para cifrar a forma da vida a partir de sua própria experiência de vida, esta seria provavelmente, na faina dos dias de hoje, a única forma geométrica possível. Resultam telas por assim dizer móveis, lembrando seqüências cinematográficas, que concentram porém um enigma visual. E exigem de nós a repetição compulsiva de seu estranho circuito, em busca talvez do erro que cometem ou da razão sutil de seu acerto. Como o problema, afinal, não é bem de erro ou acerto, permanecemos ali, intrigados, diante dela…

 

E tais enigmas nada tem de secretos, profundo ou obscuros; são panares, abertos e, se alguma coisa, excessivamente luminosos. A seu modo, detêm um alto poder de figuração – sua mobilidade excêntrica remete aos perfis ininterruptos, às peripécias inéditas, enfim, ao equilíbrio assimétrico do mundo-da-vida contemporâneo. No entanto, à medida em que vamos conquistando a sua intimidade, certas telas novas de Antonio Manuel conseguem nos convencer de que resumem uma biografia única e coerente.

 

Normalmente evito aplicar ao curso da obra de um artista a metáfora do amadurecimento: ela atribui causas “naturais” justamente as mudanças qualitativas que demandam elucidação crítica. Dito isto, a arte diversificada de Antonio Manuel, rebelde a rótulos, exige sinais evidentes do que se costuma chamar maturidade. Já o livre trânsito entre pintura, escultura e instalações, sem perda de substância plástica, sem pretensões experimentais anacrônicas, demonstra a segurança de meios própria a linguagens adultas. Mas a retórica da maturidade me pareceria aqui deslocada, no mínimo, falta de tato interpretativo. Em definitivo, a obra de Antonio Manuel é dessas que pertencem e sempre vão pertencer ao domínio da juventude espiritual.

 

Descarta a hipótese molesta, nem por isto respiramos aliviados: sobra inteiro o dilema crítico perante a gravidade inusitada das telas recentes do artista. Gravidade formal, gravidade emocional, a reclamar uma reavaliação da própria “física” do trabalho – o peso mesmo desses quadros, alguns em grandes dimensões, à primeira vista desmentem a sua linguagem aberta, a sua promessa de eterna disponibilidade. Sensivelmente, o seu tempo vital é outro, mais denso e demorado. Outra será mais, meditativa, a duração da leitura perceptiva. Os múltiplos acidentes, os repentinos cruzamentos e desvios de planos, que me seduziram a propor uma analogia com o equilibrismo arquitetônico das favelas, como que se reduzem, se concentram, e surgem em escala ampliada. O quadro faz uma aproximação muito mais direta, anuncia um evento iminente que nos deixa em suspenso, por assim dizer, em tensa expectativa. Depois dele, as pinturas dos 80 mostram-se quase voláteis, espécie de travellings panorâmicos sobre os contornos do mundo. As novas telas, estas manifestam-se na superfície do real e aí nos envolvem.

 

Comparativamente, os últimos quadros parecem blocos concentrados de pintura  a demandar um embate imaginativo prolongado. Duas décadas de prática de pintura ininterrupta, embora não-exclusiva, foram ensinando ao artista uma verdade inelutável – a evidência estética do transitório pressupõe a compreensão do senso de permanência. Uma coisa é representar fluxos, outra, bem diferente, é cifrar o fluxo em forma. O vocabulário e a paleta (consideravelmente mais aguda, conservando porém o mate característico), basicamente os mesmos, sofrem entretanto uma redução drástica de seus poderes alusivos – cada uma das telas arma agora o seu quebra-cabeça estrutural a partir de um dilema visual de longo alcance e longa duração. Sob certo ponto de vista, de fato resultam assim obras mais vitais – referindo-se menos à vida em geral, ocupam-se profundamente com sua própria vivência.

 

Ronaldo Brito

O presente texto foi extraído da monografia de Ronaldo Brito publicada no catálogo da exposição de Antonio Manuel no Centro de Arte Hélio Oiticica, no Rio de Janeiro, em agosto de 1997.