antonio manuel_

22 out_2002 - 14 nov_2002

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Observador em órbita            Sônia Salzstein

 

Nesse conjunto de telas recentes de Antonio Manuel revela-se, antes de mais nada, a atualidade e o vigor crítico da vertente construtiva brasileira, no universo da pintura contemporânea. A atividade de pintor ocupa lugar central nos interesses desse artista desde os anos 90 e as obras expostas consolidam o reexame enérgico a que ele, desde então, vem submetendo a questão construtiva. Isto não basta, entretanto, para definir a

nova safra de trabalhos.Trata-se de uma mostra que afirma caminhos instigantes não apenas no interior da obra de Antonio, mas também no debate da própria pintura, num momento em que por toda a parte não mais do que uma restrita faixa da produção artística dedica-se a ela.

 

Há, na biografia do artista carioca, a marca de uma trajetória com raízes no neoconcretismo e no tipo de iconoclastia otimista e criativa que o tropicalismo fez incidir no ambiente artístico dos anos 60: a exigência da franqueza construtiva, a valorização da evidência da operação e do processo em meio aos quais a obra se constitui, mas também o apreço pela improvisação, pela burla, pela possibilidade de subitamente reverter o

curso das coisas, de adicionar, no último momento, um novo elemento a processo. Mas a atualidade da pintura desse artista não deriva da chancela histórica que a tradição construtiva pudesse lhe oferecer; advém, ao contrário, do tipo de relação insubordinada e anti-programática que entretém com ela, do fato de que a investe “por dentro”, live para desmontá-la, testar seus limites, até quase levá-la à dissolução.

 

Se à primeira vista as telas que Antonio Manuel agora apresenta parecem subordinadas à disciplina estrita de planos de cores francas e rigor bidimensional, sob a contenção de

superfície logo se adivinha um trânsito livre e energético de formas, a astúcia pacientemente cultivada para a improvisação e a atenção atilada que flagra acasos luminosos, sempre impondo guinadas imprevistas e surpreendentes à ordem geral das articulações formais. Ordem, aliás, que longe de ser percebida pelo artista sob a lente idealista da pureza construtiva das formas ou de uma racionalidade regeneradora, que pudesse ser inerente às formas, assoma como algo que reage incessantemente à sua presença, é a série de limites, brechas, compartimentações com os quais o pintor terá de lidar nessa espécie de saga à base de tentativa e erro que caracteriza a feitura dos trabalhos (os “erros”, é preciso dizer, perfeitamente acolhidos e potencializados por eles).

 

Dessa maneira, nas últimas telas de Antonio o espaço se constrói passo a passo, como num mosaico sem fim no qual a inserção de cada peça não assinala, diferentemente do que se poderia supor, o preenchimento de um lugar conhecido, mas a conquista de uma posição. Cada forma, cada plano nessas pinturas demarca esse lugar que terá se estabelecido com aplicação e meticulosidade, e que além disso deve sustentar-se na dinâmica afiada de relações mais amplas que amarra toda a superfície. Daí a impressão de cinetismo, de mobilidade aérea presente em grande parte dessas pinturas; os planos, em luta constante pela determinação do lugar que melhor lhes convém, transbordam pelos lados, empurram-se uns aos outros, represam ou desatrelam reservas de forças.

Como em alguns trabalhos é recorrente o procedimento de organizar a superfície em duas áreas, uma delas de algum modo espelhando ou repercutindo a outra, esse grupo de trabalhos, ademais, remete curiosamente à idéia de um espaço curvo, como se pressupusessem um observador em órbita, isento de gravidade e capaz mesmo de trespassá-los.

 

Embora estejamos inequivocamente em face do reino ótico da pintura, há, então, toda uma vivência corporal no interior de cada uma das obras, ou algo como o roteiro dos percalços de um corpo para situar-se, posicionar-se de maneira estratégica perante situações instáveis e coercivas. Nesse contexto, as formas ora se oferecem como anteparos inacessíveis ao observador, num hieratismo de iluminura medieval, ora sugerem a imersão em profundidades difusas, puramente atmosféricas, ora ainda

solicitam que nos furtemos por passages estreitas e “janelas” veladas sob a superfície.

Também a cor, nessas pinturas, favorece a sinergia entre percepções óticas e corporais: pede a acomodação envolvente em superfícies de cinzas e vermelhos densos e quentes, o aniquilar-se na frieza perolada de luzes fluorescentes, o comprimir-se em ductos exíguos mas de intenso magnetismo, com vermelhos, brancos e amarelos

altamente protéicos.

 

Em relação à produção anterior de Antonio Manuel em pintura, é preciso dizer que esses trabalhos descortinam o dado novo de uma escala mural; embora não tenham, propriamente, dimensões monumentais, ostentam uma fisionomia pública o suficiente para que não reste dúvida de que aludem aos espaços planejados, aos enquadramentos a que somos permanentemente submetidos nos espaços da cidade contemporânea.

 

imagens da exposição