ana maria tavares_

27 nov_1990 - 21 dez_1990

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Ana Maria Tavares e o cerco da arte

 

Um conflito pontua toda a produção de Ana Maria Tavares: a luta entre um entendimento da arte como espaço existencial, lugar de configuração mais eficaz de sua sensibilidade, e a consciência (derivada da lição duchampiana) sobre a impossibilidade da arte hoje em dia escapar do cerco institucional que a sociedade lhe criou.

 

A enunciação deste conflito talvez esclareça logo de início o fato da artista conscientemente não ter se definido por uma modalidade artística determinada, preferindo agir sempre em seus limites. Para Ana, identificar-se como desenhista ou escultora, ou pintora, etc., parece um dia ter significado confinar-se ainda mais num território já fartamente delimitado. Sem dúvida esta atitude não busca circunscrever uma postura absolutamente original dentro da arte contemporânea. Afinal, desde o Dada e, no caso brasileiro, desde o fenômeno neoconcreto, vários artistas vêm operando entre aquela fronteiras. O que é original na trajetória de Ana é como a artista individualiza essa atitude, sabendo acrescentar a esse procedimento, perceptível em outras poéticas, certas propriedades que particularizam sua atuação.

 

Ponto diferencial da produção de Ana é sua capacidade de tornar viível nos trabalhos que realiza aquele conflito referido acima – móvel de sua atitude no campo da arte. Suas peças e instalações são mais do que pontos de equilíbrio entre forças instintivas nloqueadas por uma razão que procura tudo dominar; são mais do que momentos de trégua tensionada entre atitudes apolíneas e dionisíacas. Os trabalhos de Ana parecem a própria concreção do conflito da arte como manifestação do eu, operando num estamento pré-determinado. Metáforas da ação possível do artista nos dias de hoje.

 

O próprio fato da artista atuar no circuito sempre intervindo no lugar onde mostra sua produção, quer através de objetos que dialogam como entorno e com o espectador, demonstra uma preocupação ou a consciência da impossibilidade de levar adiante a concretização de sua individualidade sem levar em conta no ato mesmo da concepção da obra, o espaço real e metafórico onde ela sempre estará irremediavelmente inserida.

 

Esta particularidade do trabalho de Ana Tavares atinge um momento privilegiado justamente na exposição do Gabinete de Arte, quando a artista demonstra ter chegado num estágio de depuração maior do conflito que caracteriza sua produção. Notem: não que Ana o solucione com os objetos agora expostos – mesmo porque não é este seu desejo, pois a artista sabe que tal conflito é insolúvel. Ana neste momento parece apenas ( mas isto é muito) ter alcançado um patamar em seu recente percurso onde se afirma com maior nitidez a razão verdadeira de sua atuação.

 

Suas peças atuais, mais do que as anteriores, tensionam o campo da escultura e do design, driblando cada uma dessas áreas, conformando um território possível onde os conceitos de objeto industrial e objeto artesanal, de objeto utilitário e objeto puramente estético, de arte e não-arte se digladiam em cada uma das peças apresentadas, colocando  espectador frente a situações onde a contemplação passiva necessariamente se transforma em participação.

 

São objetos estranhamente familiares, parentes desses que povoam nosso universo cotidiano. Todos rigorosamente executados. Objetos com uma aparência de racionalidade que a princípio produz no espectador o desejo de utilização imediata. No entanto, essa razão utilitária presente em suas configurações é na verdade falaciosa, e o público após a primeira impressão se dá conta deste fato. Se tal razão é apenas aparente, se os desenhos que configuram cada objeto exposto não foram pensados visando uma utilização prática, a que vêm esses objetos, uma vez que também não se inscrevem de maneira confortável no campo tradicional da escultura, já que lhes faltam certos apoios para que se configurem como tal?

 

Entre o design e a escultura, entre o objeto de arte tradicional e o objeto aparentemente utilitário, as peças da artista reafirmam a impossibilidade da arte hoje em dia constituir um sentido, a não ser pela negação ou tangenciamento crítico das modalidades artísticas tradicionais (ou pela reinvenção das mesmas, o que não é o caso de Ana).

 

Como foi colocado, os trabalhos de Ana Maria Tavares agora à mostra são uma depuração do conflito já enunciado, fato que persegue a artista desde o início de seu percurso. Num passado próximo, 1988, Ana já dava sinais evidentes dessa depuração através de seus móveis, exibidos no ano passado na itinerante “Arte Híbrida”. Eram objetos indeterminados rolando entre o campo da escultura e do design. Brecados para a exposição, parodiando esculturas ou objetos de arte tradicionais, tensionar o próprio território criado entre duas modalidades de produção (a escultura e o design), uma vez que, por causa do acabamento apuradíssimo, “industrial”, faltavam-lhes, na configuração final elementos que justificassem o sentido de estranhamento esperado de um objeto de arte (afinal, eles estavam numa exposição de arte “moderna”). Faltava-lhes a aura de “inutilidade” do objeto de arte tradicionalmente entendido como “transgressivo”. Afinal, eles podiam se deslocar como aparelhos de uso cotidiano, revelando uma (falsa) utilidade – o suficiente para incomodar sobretudo o espectador acostumado a se deliciar com objetos que reafirmam a “falta de significado” da arte nos dias de hoje.

 

A mobilidade presente naqueles objetos, por outro lado, estabelecia um diálogo dúbio, irônico mesmo, com os espaços onde foram expostos. Em tese eles sempre poderiam abandonar facilmente cada recinto onde foram apresentados, deixando a arte entregue a si mesma.

 

A capacidade de dialogar com o espaço e seus elementos fica patente nos trabalhos de instalação de Ana Maria Tavares, e não apenas em seus objetos interferentes. Se nas peças de 1988 e nestas agora de 1990 Ana operou entre os territórios da escultura e do design, em sua instalação “Bico de Diamante”, realizada este ano no Paço da Artes, seu problema era trabalhar com alguns elementos mais típicos da pintura. Transformando a sala que escolheu, através da inclusão de um plano de cor/luz verdemetálica.(entre os dois planos formados por uma parede e duas colunas), e um anteparo fronteiro a essa superposição de planos, a artista reforçou algumas das especificidades mais rígidas da pintura tradicional: a perspectiva e o exercício de frontalidade que essa modalidade requer do espectador. Reforçou-as e ao mesmo tempo as negou, através da possibilidade que apresentou ao público de observar ou literalmente penetrar entre os planos da “pintura”.

 

Essa capacidade da artista estabelecer relações inusitadas com o espaço e seus elementos constituintes teve um momento pontual em 1986, com o trabalho “Abrigo Para o Sol”, realizado para o “Projeto Vermelho” na Fundação Armando Álvares Penteado, São Paulo. Um reservatório cilíndrico de 2,80m de altura por 2m de diâmetro construído com tijolos refratários. Uma arquitetura monolítica, “industrial”, que destoava do entorno “artístico” dos jardins da FAAP, através da mesma razão utilitária falaciosa que a artista usaria mais tarde em outros trabalhos. Apesar da aparência, nem caixa d’água, nem silo comum, muito menos um objeto de arte previsível. E sim uma construção específica para receber, guardar e manter por algumas horas os raios de luz solar.

 

Interessante nesse trabalho o fato da artista privilegiar uma relação com o macrocosmo, levando para o espaço do Projeto uma dimensão lírica surpreendente, difícil de ser localizada na maioria dos trabalhos ali expostos.

 

O lirismo, a expressividade nos trabalhos de Ana, ou seja, o componente subjetivo da artista na realização de sua produção, como foi visto, parece estar encontrando mais recentemente sua colocação adequada em sua relação com a consciência da arte como território totalmente delimitado. Nos seus novos objetos e instalações aquele primeiro componente funde-se com o segundo,produzindo interferências que concretizam essa relação tensionada e conflituosa. No entanto, em alguns trabalhos anteriores, quando esse conflito ainda não havia atingido a depuração atual, o componente subjetivo da artista parecia querer dominar a situação, como se fosse possível, através da ênfase à gestualidade expressiva, driblar o contexto institucional da arte. O exemplo máximo desse momento tenso, quando se percebe claramente o esforço quase ingênuo da artista para salvaguardar sua individualidade do cerco da arte, foi o ambiente que Ana criou para a XIX Bienal Internacional de São Paulo, em 1987. Ali, ao invés de relacionar-se diretamente com o espaço da mostra, a artista optou por separar-se definitivamente do entorno, construindo num universo à parte um território aparentemente ideal para sua subjetividade.

 

O ambiente de 228m² era um imenso cubo composto por três salas revestidas de cerâmica branca ligadas por um mural. Um espaço frio e anódino povoado, entretanto, por linhas e volumes que, originados nas paredes em imensos desenhos gestuais, invadiam as salas demarcando áreas de sombra e luz de intensa dramaticidade. No entanto, apesar da inegável qualidade da instalação como espaço de expressão de uma individualidade inconformada, penetrar naquele ambiente não era sair da arte (a Bienal) para ingressar numa experiência puramente existencial. Era justamente entrar num território auto-institucionalizado, uma representação do espaço tradicional de uma galeria de arte.

 

Nessa instalação para a XIX Bienal, Ana, recém-chegada de um período de estudos no exterior, tentava dar prosseguimento a duas experiências bem-sucedidas realizadas anteriormente nos Estados Unidos onde, através do desenho e do uso bem articulado dos elementos constituintes dos espaços em que operou – oxbow Art Center (oxbow – Michigan) e na Superior Street Gallery Saic (Chicago – Illinois) -, a artista já demonstrava sua capacidade em jogar a subjetividade que lhe é inerente com o lugar da arte, sempre levando em contas as possibilidade de propor ao espectador uma relação mais totalizadora com a obra e o espaço onde ela ocorre.

 

Essa característica de não se contentar com os espaços limitados das modalidades artísticas tradicionais que Ana radicalizou a partir de sua experiência norte-americana (1984 – 1986), na verdade já podia ser sentida tanto em seus desenhos e gravuras, realizados na primeira metade da década passada, quanto em seus trabalhos apresentados nas exposições “Pintura Como Meio”, no MAC-USP, em 1983, e “Objetos e Interferências”, na pinacoteca do Estado, em 1982.

 

O desenho que a artista enviou para a mostra “E o Desenho?”, realizada em 1985 na Humberto Tecidos, demonstrava nitidamente a necessidade de Ana extrapolar os limites do plano, no sentido de intervir mais profundamente no espaço e na percepção do público.

 

Suas pinturas apresentadas no Museu de Arte Contemporânea, desprovidas de chassis e jogadas sobre painéis delimitadores do espaço reservado para a artista na exposição, mais do que demonstrarem um caminho possível e original para a “volta à pintura” que se iniciava naquele período no país, já evidenciaram as posteriores discussões de Ana a respeito da arte e do lugar da arte na contemporaneidade.

 

Na exposição da Pinacoteca do Estado, com uma instalação realizada a partir da colocação de chapas de borracha perfuradas, na parede, que formavam um desenho em constante transformação a partir do deslocamento do público na sala, Ana iniciava seu percurso profissional, estabelecendo os parâmetros de sua atuação questionadora, fruto de uma sensibilidade inconformada com as regras socialmente determinadas para a arte.

 

A mesma sensibilidade que fez a artista procurar redimensionar sua primeira aprendizagem em Belo Horizonte, a favor de um posicionamento problematizador com o fato artístico contemporâneo, conseguindo em São Paulo sobretudo através do contato com Julio Plaza, Nelson Leirner e Regina Silveira, seus professores na FAAP e na Aster.

 

Tadeu Chiarelli

 

Outubro de 1990