ana linnemann_o mundo como uma laranja

06 ago_2003 - 26 ago_2003

ana linnemann_o mundo como uma laranja

Adentrar O mundo como uma Laranja de Ana Linnemann é como deparar com uma pintura em três dimensões, navegar as formas e espaços fraturados de uma natureza morta cubista. Ou mesmo, dada a sugestão de corte violento a plano pictórico, talvez seja algo como experimentar o dinamismo de um interior futurista. Uma torrente de referências à história da arte me vem à mente – os desenhos da Bauhaus, a paleta de cores primárias de Piet Mondrian (vermelho, amarelo, azul, preto – embora Linnemann introduza o verde); os padres vibrantes da Op Art. A artista se refere a uma tradição formalista e suas questões de cor, forma, estrutura e textura. No entanto, também faz um jogo conceitual – o piso axadrezado evoca deveras um imenso tabuleiro – que combina a precisão e o acaso.

 

O Mundo como uma Laranja encontra seu tema e princípio organizador (as regras do jogo) na esfera do cotidiano, embora Linnemann transforme o familiar em algo estranho e até mesmo fantástico. Cada elemento reconhecível de seus tableaux domésticos é cortado como se cortaria ou se descascaria uma laranja num único e extraordinariamente habilidoso movimento. Os pequenos tapetes parecem ter sido atirados no chão como uma menina jogaria por cima do ombro as cascas de uma laranja na esperança de que as letras às quais se assemelham quando caem possam revelar as iniciais de seus futuros amores. Existe mesmo magia no mundano.

 

Este grupo de peças remete, assim, aos trabalhos anteriores da artista, os quais também incorporavam uma tarefa tradicionalmente doméstica (a costura) à prática artística. Sua obra traz sempre o elemento do inesperado. Ana Linnemann já vestiu blocos de cimento, costurou pedras com fios de arame e colocou zíperes nos caules de delicadas folhas. Com suas improváveis combinações de material e função, os trabalhos de Linnemann lembram a xícara de chá forrada de pele de Meret Oppenheim ou o ferro de passar cravejado de pregos de Man Ray. Como esses objetos igualmente maravilhosos e ridículos, as construções (ou destruições) de Linnemann são caracterizadas por um senso de humor e uma dose do inusitado. Perdendo sua função, os itens simples porém icônicos que vitalizam o espaço da galeria se transformam em algo mais, não menos. Desfiado, o mais comum e ordinário dos guarda-chuvas transforma-se num objeto de beleza – frágil, gracioso, quase vivo. Pendurado em seu gancho, o casaco de chuva impermeável, quase que totalmente retalhado, é uma tour de force delicada porém magistral, bem como uma alegre rejeição da banalidade dos costumes sociais. Da mesma forma, na obra de Man Ray, o ferro que agora não mais serve para sua função, torna-se o Cadeau do título, pois deixa de ser um instrumento de trabalho enfadonho para tornar-se objeto de curiosidade. No final das contas, essas coisas podem ser mais significativas como lembretes do nosso passado, de nossas memórias – como a madalena de Proust – do que em suas utilidades originais.

 

Os relógios na parede simbolizam responsabilidades e expectativas mas, duplicados e desconstruídos perdem um pouco de seu domínio sobre nós. Cortados em tiras espirais, os relógios alterados refletem a verdadeira natureza do próprio tempo. Entretanto, tiquetaqueando incansavelmente, eles mantêm a estrutura padronizada porém arbitrária que fatia o tempo (anos em meses, meses em dias, dias em horas, horas em segundos) e ordena a nossa existência e os rituais que medem e ditam nossas vidas. Vistos em conjunto, os relógios e o globo nos lembram, ainda, as excêntricas divisões do mundo que nos cerca (fusos horários, continentes, países, estados e territórios políticos). Assim

como O mundo como uma Laranja de Linnemann, esse lugar é simultaneamente familiar e desconcertante. E, do mesmo modo, temos que rir de seu absurdo.

 

Susan Cross

 

imagens da exposição