amilcar de castro_

12 mai_1998 - 30 jun_1998

amilcar de castro_

MUNDO SUSTENIDO

Rodrigo Naves

Os trabalhos mais recentes e Amilcar de Castro em certa medida revertem alguns aspectos que marcaram uma parte significativa de sua produção. Nas esculturas de corte e dobra, o artista partia de chapas de ferro de no máximo 2 polegadas e por meio de torções precisas alcançava uma tridimensionalidade tensa, em que plano, volume e espaço não se deixavam determinar de maneira unívoca, remetendo constantemente uns aos outros.

 

As esculturas apresentadas nesta exposição, ao contrário, têm em princípio um volume mais pleno. Sua maior espessura, unida a menores formatos, lhes garante de saída uma distância marcada em menores formatos, lhes garante de saída uma distância marcada em relação às placas de que partiam as obras no início. E no entanto os trabalhos atuais dependem mais do que nunca do que ocorre em sua superfície, acentuando uma tendência que surgira nas obras de corte e deslocamento, sem dobras, que começaram a ser realizadas na década de 70.

 

Nessas esculturas, os deslocamentos e intervalos criados pelas áreas seccionadas produziam contrastes tonais entre as diversas partes das peças, com o que se obtinha um jogo quase pictórico entre claros e escuros, entre linhas, recuos e proeminências. As leves gradações de tom conduziam a integração de volumes acentuados, que contrariavam a delicadeza da luz que os unificava. Entre a continuidade da luz e o aspecto interrompido do ferro, contudo, parecia prevalecer o movimento de aproximação entre as partes.

 

Estes últimos trabalhos intensificam ainda mais as características pictóricas daquelas obras. Algumas peças se justapuseram a outras. Certos deslocamentos produzem passagens de maior alcance. Recortes internos revelam faces que antes não entravam em consideração. E tudo contribui para que se ampliem aqueles jogos de superfície que já moviam as obras. Mas um outro elemento vem fortalecer esse modo de construir a fisionomia das esculturas.

 

Amilcar de Castro parecia ser sinônimo de ferro. A mestria com que sempre lidou com esse material fizera com que obtivesse dele toda a sua expressividade, como se lhe houvesse conferido sua forma ideal. Agora, para nossa surpresa, dois outros materiais entram em campo: granito e madeira. E sem dúvida as diferenças de cor, textura e suas diversas resistências ao corte passam a ampliar aquele movimento que dera uma nova relevância à superfície das peças.

 

Quando cotejamos três formas semelhantes realizadas em materiais diversos essas questões se revelam claramente. Os trabalhos realizados com baraúna — uma madeira escura e resistente — parecem tender para uma reconstituição do bloco de que partiram. A sua cor, o seu aspecto vegetal — em que os veios guardam a lembrança de algo que cresceu aos poucos —, conduzem a percepção ao restabelecimento de uma continuidade que apenas momentaneamente foi suspensa por cortes e deslocamentos. E seu pouco peso ajuda a fazermos esse movimento de aproximação. Já as esculturas em ferro, com suas arestas marcadas, com a irregularidade da oxidação de suas faces, com seu peso acentuado, assentam-se mais na disposição em que se encontram, expondo-se aos jogos de sombra e luz de maneira altiva, sem importar-se muito com o que ocorre a sua volta. E as peças em granito se situam numa posição intermediária entre as de madeira e as de ferro. Têm uma textura variada, refletem um pouco a luz, mas sua fragmentação parece irreversível, pois não há nenhum processo capaz de reconduzí-la à forma inicial.

 

Fica claro que nos três casos o emprego matutado dos diferentes materiais irá levar a configurações diversas, ainda que que os recortes sejam semelhantes. Nesse ponto um outro movimento começa a mostrar sua importância na estruturação das novas esculturas do artista. Amilcar de Castro já havia mostrado que sabia como poucos passar de um meio a outro sem perder sua poética. Nas esculturas, desenhos, gravuras e mesmo em projetos gráficos — principalmente a diagramação do Jornal do Brasil, realizada no final da década de 50 — a consideração precisa dos elementos utilizados proporcionava resultados grandiosos com técnicas muito diversas. Nas obras desta exposição a capacidade de tirar partido dos materiais novamente se comprova. Ao mesmo tempo em que pedra, ferro e madeira se prestam àquelas passagens de superfície. Amilcar trabalha-as de modo a nunca perder de vista a sua particularidade enquanto material.

 

As superfícies das esculturas ininterruptamente remetem à densidade dos elementos empregados, ao invés de ocultá-la, como ocorre corriqueiramente quando instrumentalizar um material qualquer, E esse cuidado recolocará o jogo pictórico que ocorria na superfície das obras em estreito contato com a massa e o volume dos materiais. A aparência das coisas guarda uma relação íntima com sua consistência, ao mesmo tempo em que a abre para novas combinações, para outros arranjos.

 

Estes trabalhos de Amilcar de Castro à sua maneira propõem uma reorganização da realidade. O que eram totalidades plenas e unitárias adquire nova vida, desdobra-se em partes, rearticular-se, respira compassadamente. Porções de diferente peso têm a mesma relevância de secções maiores — o que importa é a possibilidade de se obterem novas unidades uma concatenação generosa do mundo. 

 

O tonalismo morandiano das superfícies — não por acaso Amilcar também homenageará Volpi aqui e ali —- fala dessas passagens meditadas, que reúnem as coisas sem desconsiderar suas particularidades. A liz tênue das transições, no entanto, carrega consigo os diferentes pesos das matérias que aproxima. A intensificação da aparência da realidade — as superfícies quase pictóricas — torna-a apta a transformações que consideram a espessura das coisas.

 

Esse ir e vir entre peso e leveza encontra um movimento equivalente nas telas recentes de Amilcar. Em todas há um quadrado dominante que é reequilibrado por faixas de outras cores. A forma original, estável e positiva, se vê dinamizada por um feixe de direções que rompe o repouso que parecia se impor. Amilcar as chama “quadrado sustenido”. E de fato o mundo que se desenha nesses trabalhos desloca o sentido e a estabilidade normais da realidade. Ainda que o mundo raramente seja tão estável quanto aqui; ainda que o mundo raramente tenha tanto sentido quanto aqui.