alberto martins_
17 abr_2010 - 22 mai_2010
Cor, corte, ferrugem
Feitas de chapas de aço em formatos geométricos regulares e planos (círculos, retângulos), as peças de Alberto Martins se espacializam a partir de dobras e cortes. Espacialização que, no entanto, não chega a se realizar completamente, fazendo essas peças entreterem um vínculo ambíguo com seu suporte: a parede e o chão.
Tendo trabalhado sempre, e de modo independente, tanto no registro planar quanto no volumétrico, o artista opera agora em um nível intermediário, em relevos verticais e horizontais que ficam entre a escultura e a gravura, como uma forma híbrida das duas. Considerando a trajetória da obra de Martins, podemos dizer que transitividade é, certamente, uma das características cruciais da sua poética. Não é por acaso que a retrospectiva da sua obra na Estação Pinacoteca (2007) tenha se chamado Em trânsito, apresentando uma delicada dialética entre a mobilidade e a fixidez, que ecoava da gravura para a escultura e vice-versa.
No presente trabalho, porém, aquela transitiva permeabilidade temática e material é, de saída, pressionada pelo diálogo com a tradição construtiva, muito forte no Brasil e especialmente em São Paulo. Como dobrar e cortar chapas de aço sem deixar de se medir com os trabalhos de Amilcar de Castro e Franz Weissmann, entre outros? Eis aqui uma das interessantes questões suscitadas por essas peças híbridas. Tanto pela escala quanto pela própria formalização – isto é, a angulação dos cortes e a relação de peso e contrapeso que se estabelece entre os planos –, os relevos de Alberto Martins estão aquém da decidida autonomia formal e estrutural daquelas esculturas. Serão gravuras querendo soltar-se das paredes, ou esculturas sem base, ainda presas ao chão? Ao que parece, apontam, nesse sentido, para algum tipo de impasse espacial, indicando uma passagem.
Ao colocar entre parênteses a autonomia formal e estrutural das esculturas de matriz construtiva, as peças de Alberto Martins se abrem a figurações variadas. Por exemplo, o que nos impediria de aproximar seus círculos, levemente fletidos e pousados sobre o chão, de um grupo de arraias em movimento, ou um lago de vitórias-régias? A metáfora mimética não desagrada ao artista, que ao ser indagado sobre essa questão se lembrou da famosa foto feita por Mário de Andrade na lagoa de Amanium (Amazonas, 1927), onde a miríade de vitórias-régias se rebate e ecoa tanto no chapéu circular do barqueiro quanto na própria forma do seu rosto, que encara o observador. Assim, diz Martins: “plano, superfície, são termos neutros. Mas uma vitória-régia é uma face, e a face não é neutra. Ela é um plano que se volta para algo, e não se encerra em si mesma.
No caso da vitória-régia: para o ar, a luz, o céu”. Se já na série de gravuras chamada Cais (década de 1990) o incessante fragor das docas, marcado pelo perpétuo movimento de cargas e de embarcações, aparecia paradoxalmente neutralizado sob a forma da imobilidade e da calcificação, aqui a ferrugem toma explicitamente a superfície das chapas metálicas, acrescentando-lhe uma dimensão turva, que dialoga cromaticamente com o zarcão, o seu avesso físico. Signo da decomposição da matéria, a ferrugem não deixa de ser, também, um indício de vida, de mudança de estado: a intromissão de um processo químico que dispara e revela a organicidade contida no metal, sua porosidade, sua impureza. Saturados de si mesmos, esses incompletos “bichos” de Alberto Martins não se prestam sequer à manipulação. Apenas se voltam para nós, como expressivas “faces” de um tempo que escorre.
Guilherme Wisnik