anna maria maiolino_um, nenhum, cem mil

23 set_1993 - 22 nov_1993

anna maria maiolino_um, nenhum, cem mil

Scalea é aqui

 

A arte brasileira deste século é em grande parte de mulher e/ou imigrante, sinônimos de exclusão e marginalidade em sociedades conservadoras, dominadas pelo homem. Talvez por esta razão tenha sido justamente no terrítorios das artes – tradicionalmente desprezados pelos filhos da elite econômica local de origem portuguesa e escravocrata-, que a mulher e os imigrantes geral (de primeira ou imediatas gerações) viram no século XX a possibilidade de encontrar um lugar na sociedade brasileira. 

 

Esta afirmação poderia ser rapidamente comprovada pela simples listagem de alguns nomes básicos da arte brasileira deste século, como os de Anita Malfatti, Tarsila do Amaral, Lasar Segall, Goeldi, Guignard, Portinari e Volpi, para ficarmos apenas nos “clássicos”. 

 

Mas o fato de serem mulheres e/ou imigrantes uniria mesmo esses artistas aparentemente tão afastados entre si? Parece que sim. E entre outros aspectos que os unem, poderiam ser salientados primeiramente o caráter artesanal, pouco grandiloquente de sua obras, certa ênfase à manualidade e á ormentação, muito próximos a uma estética de derivação popular – origem social da maioria dos imigrantes –  e tradicionalmente relegada à mulher. 

 

Por outro lado, o que uniria esses e outros brasileiros seria justamente o fato de todos terem encontrado suas identidades na sociedade local através da tentativa de constituição de uma arte brasileira possível, lugar de confluência entre suas vivências ancestrais, arquetípicas e a realidade em que vivam (o Brasil). 

 

Mais recentemente, ou seja, após o final da Segunda Grande Guerra, tal lugar ganhou outros contornos e outros graus de complexidade, quando certos questionamentos trazidos pela arte internacional deste século foram absorvidos e expandidos por artistas nascidos no país ou aqui residentes. 

 

O movimento neoconcreto, pode-se dizer, criou um outro terrítorio possível para a arte brasileira, colocando algumas de suas produções justamente nos limites entre as modalidades artísticas tradicionais ( caso dos Não-Objetos, teorizados por Ferreira Gullar), ou mesmo  naquele entre arte e a vida. 

 

Na constituição deste terrítorio movediço, (transformado em referência salutar para a arte que seguiria) percebe-se outra possibilidade de uma arte local, uma “arte internacional  brasileira”, exercida igualmente de maneira intensa por artistas mulheres e/ou imigrantes ou indivíduos de origem imigrante. 

 

Sem dúvida, neste contexto mais recente, artistas homens e com origem brasileira remota também contribuíram para a formulação daquele terrítorio. A obra de Hélio Oiticica está aí para provar. No entanto, ela possui igualmente um estruturação conceitual artesanal e popular que a liga irremediavelmente às obras de seus parceiros Lygia Clark, Lygia Pape, Barsotti e outros-mulheres e/ou imigrantes de primeira ou segundo geração.

 

Todos, gravitando nos limites da pintura e da escultura e/ou da arte e da vida, reapresentaram para a arte brasileira atual o mesmo gosto pelo “arranjo”, mais do que pela “construção”, a predileção pelo ornamento, mais do que pelo preenchimento do campo…

Enfim, como seus antecessores- só que em chave contemporânea -, eles continuaram  o resgate do popular, da vivência singularizada, de certas predileções estéticas tradicionalmente tidas apenas como pertencentes ao universo da mulher, criando assim um sotaque local para a arte internacional aqui realizada.

 

Estas considerações vêm a propósito dos trabalhos mais recentes da artista brasileira de origem italiana, Anna Maria Maiolino. 

 

Sua produção parece sintetizar muito bem a caracterização da arte brasileira deste século. Fruto da sensibilidade de uma mulher imigrante, em seus trabalhos percebe-se de fato a constituição literal de um lugar de confluência de sua memória individual-marcada pela visualidade  agreste do sul da Itália-, de seus condicionamentos culturais de mulher nascida do povo, e os principais questionamentos que singularizam a arte brasileira nos últimos quarenta anos. 

 

Nascida em Scalea, Maiolino, antes de seu primeiro estágio carioca, viveu vários anos na Venezuela, onde iniciou a carreira artística. No Rio de Janeiro nos anos 60, tendo continuado seus estudos de pintura e gravura, participou ativamente do clima de renovação causado pela ruptura que havia significado o neoconcretismo no circuito local. Já naquela época, Maiolino tentava discutir em sua produção suas vivências afetivas e culturais de mulher. 

 

Foi o período das xilogravuras fortemente marcadas pela estruturação imagética da literatura do cordel, plasmada tanto por um irrepreensível know how da modalidade que exercia, quanto pela força das imagens que gravava, frutos de sua biografia. Nessas gravuras e em alguns objetos do período, percebe-se Maiolino mapeando sua vida, tematizando suas experiências cotidianas como mulher em seus diversos papéis culturais (filha, mãe, esposa), ao mesmo tempo em que discutia e revitalzava as potencialidades formais da gravura e da própria concepção do objeto- questões caras aos integrantes da Nova Figuração.

 

Esta característica de conseguir tornar visiveis suas vivências mais íntimas em trabalhos com forte inequietude formal-impedindo que resvalassem apenas para uma discussão formalista e estéril-acomphará Maiolino por toda sua trajetória. 

 

Mesmo em seu estágio novaiorquino (entre o final dos anos 60 e início da década seguinte), quando investe na desconstrução do suporte da gravura e do desenho – numa ação muito marcada pelas questões formais que engajavam os artistas do período -, é visível como, paralelo a tal atitude, existe o mesmo empenho na busca de uma metáfora para sua indagações mais particulares (fotos 1,2 e 4). 

 

Ali a neutralidade convencional do papel é violada através de incisões, fendas, perfurações, penetrações. O papel-corpo torna-se suporte-vítima de desejos e buscas de auto-conhecimento que retiram desses trabalhos qualquer possibilidade de serem vistos apenas como exercícios formalistas de uma vanguarda acuada pelos questionamentos estéticos da época. 

 

De volta ao Rio de Janeiro no início dos anos 70 – além de realização de filmes e instalações onde persegue as mesmas buscas-, Maiolino continuará desenvolvendo a produção iniciada nos Estados Unidos ( fotos 6, 9, 10 e 11). Será o período das séries Mapas Mentais (fotos 3 e 5) e Buracos Negros ( foto 7). Os trabalhos da primeira série são poemas visuais onde a artista continuará a situar-se poeticamente na história. Já os  Buracos Negros, ( papéis negros rasgados em perfurações sobepostas, caracterizada por uma gestualidade contida) podem ser pensados como contrapontos perfeitos aos Mapas Mentais.      

 

Se nos últimos a artista buscava estabelecer uma topografia de seus desejos, afeições e medos em relação ao seu universo cotidiano, (marcado pelas circunstâncias polítcas da época), nos primeiros, dava continuidade à busca de um conhecimento mais profundo de si mesmo, sinalizando o período de forte introspecção que se avizinhava. 

 

Se os Buracos Negros indicavam claramente uma viagem em direção ao corpo (impossível não relacioná-los aos orificios do corpo humano), um processo de desnascer, as aguadas e pinturas produzidas nos anos 80 (fotos 13 e 14) – fase que em parte coincide com o período que a artista viveu em Buenos Aires- são a própria realização dauqela vontade de recolhimento, de volta ás origens mais recônditas. 

 

(E a volta à pintura neste período também deve ser pensada como um retorno às origens) 

 

No espaço pictórico configurado seguindo os preceitos tradicionais de figura e fundo, formas orgânicas dançam num espaço liquefeito. 

 

Sem dúvida, o retorno de Maiolino à pinturas coincide com a necessidade que naquela mesma época vários artistas sentiram de rever a tradição da arte, após um período de fortes questionamentos artísticos e estéticos. No entanto, o curioso é que sua trajetória, como sempre conectada com as inquietações da época, nunca se sobrepõe às próprias  inquietações enquanto artista-mulher, protagonista de uma circunstância intransferível. 

 

Se para muitos o retorno à tradição nos anos 80 representou o esgotamento final de suas potencialidades, o mesmo não ocorreu com Maiolino. Após a gestação daquelas formas embrionárias no espaço virtual das pinturas, elas renasceram do interior das telas, buscando ganhar o espaço real através, inicialmente, de relevos em gesso ou cimento. 

 

Foi justamente na passagem da pintura para essa forma híbrida que é o relevo – pintura/escultura (foto 15) – que Maiolino parece ter atingido sua maturidade como artista e sua exata significação para a arte brasileira atual. 

 

Ali ela expande e carrega de novos significados e possibilidades a recente tradição artística local de operar entre os limites de pintura e da escultura, uma vez que em seus relevos a hibridização não se dá apenas em relação aos aspectos formais que envolvem a pintura e a escultura, mas igualmente a partes significativas das histórias desses dois procedimentos artísticos; elaborados segundo as técnicas tradicionais da modelagem e guardando no seu processamento traços referentes à história ancestral da escultura (e mesmo da gravura), esses trabalhos igualmente contemplam a história da pintura pela ênfase dada ao lado pictórico constitutivo do relevo, não apenas pela manutenção da dependência em relação à parede, como igualmente pela utilização de pigmentos e texturas muito típicas do universo 

pictórico. 

 

Outro dado significativo nesta nova fase é que, quando aquelas formas se liberaram do espaço totalmente plano da tela e do papel, renasceram tensionadas não apenas entre a pintura e a escultura, mas igualmente entre o retângulo e o oval, o racional e o irracional, o objetivo e o subjetivo. 

 

São formas que se apresentam ao mundo como um lugar detreminado – uma operação típica da arte moderna em geral e das obras neoconcretas em particular – e, ao mesmo tempo, representam, mapeiam de novo um lugar afetivo, impregnado de memória, o óvulo originário. 

 

Neles são perceptíveis as representações dos tons, das cores, da topografia mediterrânea da infância da artista, em equilibrío perfeito com a apresentação de cada relevo em si mesmo, como resultado de um conjunto de operações motoras e perceptivas, formas de intenso impacto visual. 

 

Já nos trabalhos da presente exposição, Maiolino dá continuidade à constituição de seu lugar na arte brasileira, através da expansão literal e metafórica de seus relevos, que agora parecem querer atingir outras formas, percorrer outras extensões, atingir outros planos. 

 

Se nos trabalhos imediatamente anteriores a artista tentava tornar visível a paisagem natal que habitava apenas suas memória, nos atuais busca resgatar e estruturar de maneira definitiva formas, imagens e atividades provenientes de seu mesmo ambiente primeiro: a mulher que amassa e molda a argila é a mesma que amassa e molda a massa para o alimento; a mulher que dispõe o alimento no tabuleiro, seguindo uma ordem ancestral, é a mesma que dispõe as formas moduladas de gesso ou de cimento sobre a parede (ou mais recentemente ainda,no chão). 

 

Esses novos relevos, além de confunidirem os limites entre a pintura e a escultura tradicionais, subvertem mais uma vez os limites tácitos entre representação e apresentação na arte. São representações de atividades mínimas, comezinhas, femininas, e são, ao mesmo tempo, formas modulares de forte apelo visual que povoam o espaço-limite entre o real e o virtual, desestabilizando a percepção do observador. 

 

Resgatam e dignificam a história e a arte cotidiana de milheres de mulheres na Itália, no Brasil e em qualquer parte do mundo, e se inscrevem com tranquilidade no debate visual contemporâneo, repropondo em chave singular questões tão caras à arte atual, como a seriação por módulos, além de discutir os limites entre modalidades artísticas consagradas. 

 

No âmbito da constituição da obra da artista, por sua vez, esses relevos parecem ser o momento definitivo de encontro, ou de síntese, entre uma forte vivência estruturalmente popular e culturalmente feminina, e uma formação erudita e racional. 

 

Se nestes trabalhos o resultado parece tão simplesente perfeito, como é perfeita, de repente, uma fornada de pão, ou as bandeirinhas de Volpi, apenas a trajetória de Maiolino até o presente pode contar o quanto foi árduo o caminho para encontrar esse lugar entre o popular e o erudito, entre a razão e a emoção, até aprender que sua Scalea remota no tempo e no espaço e seus questionamentos estéticos e artísticos tão atuais podiam estar ali mesmo, no próprio ato de elaboração de sua produção mais recente. 

 

Tadeu Chiarelli, agosto de 1993