geórgia kyriakakis_outros continentes
07 mar_2009 - 25 apr_2009
A cartografia mais difundida no mundo é a cartografia marítima de padrão europeu, em que o norte é representado pela Estrela Polar, astro visível apenas no Hemisfério Norte. É dela que derivaram os padrões de mapa mais conhecidos. Mas como a Terra é esférica, poderíamos representar o planeta com qualquer dos continentes no centro. Toda representação cartográfica pressupõe uma hierarquização entre partes inferiores e superiores, envolvendo visões geopolíticas. O trabalho de Geórgia Kyriakakis, sem qualquer pretensão de uma representação possível das relações entre os continentes, desconstrói não apenas a falsa neutralidade do mapa-múndi, mas a própria ordem que o estrutura. As relações entre as extensões de terra são estabelecidas a partir de alinhamentos e de aproximações imaginárias. Na realidade, a própria definição de continente é colocada em xeque pelo seu trabalho. O que seria uma grande porção de terra cercada por água é aqui constituído por desenhos de bolhas de sabão sobre um fundo negro. O aspecto frágil e provisório da crosta terrestre é acentuado pela instabilidade característica das bolhas de sabão. As bolhas, espécie de película líquida preenchida de ar, formam-se apenas a partir de movimentos como o das ondas do mar. Não por acaso, os mapas acompanham horizontes marítimos alinhados. A linha que surge no horizonte, uma linha limite, que em última instância é circular, marca o encontro do céu com o mar. Mas as bolhas de Outros Continentes, 2009, são antes de tudo desenho. Como já foi observado por Tadeu Chiarelli, a linha da artista sempre tendeu a se expandir para outros campos, algumas vezes tomando o espaço tridimensional. É por isso que o trabalho, embora tenha partido do desenho, foi fotografado em alta definição, impresso, laminado e adesivado, tornando-se uma espécie de híbrido entre estampa, fotografia e o próprio desenho. Não há um original e sim um desenho matriz. Mas o trabalho não é a matriz e sim a sua reprodução técnica, montada como um quebra-cabeça de peças que se encaixam. O percurso de Geórgia Kyriakakis possui uma produção variada, com a utilização de suportes, materiais e meios os mais diversos, mas sempre em trabalhos com relações coerentes entre si. O que não quer dizer que exista em sua produção um desenvolvimento contínuo e homogêneo. Como a artista jamais abdicou da experimentação e da descoberta, com todos os avanços e recuos necessários, não poderíamos supor que os trabalhos atuais sejam apenas consequências inevitáveis dos anteriores. Se por um lado eles podem ser relacionados, por outro são completamente distintos. A série Continentes, 2002, de grafite sobre papel vegetal colado em fotografias, trazia uma transparência, uma espécie de membrana, análoga ao princípio da bolha. Do mesmo modo, alinhamentos horizontais já apareceram na série Estáveis, 2002, e em Helenas de óleo, 2002. Talvez até Atratores Estranhos, 1999, já tivessem uma clara relação com o presente trabalho, uma vez que linhas orgânicas e vivas surgiam entre a fuligem e o vidro. Os vazios e o jogo entre continente e conteúdo, como nessas imagens de bolhas sobre fundo negro, são recorrentes. A ausência e o oco dos seus trabalhos com fogo, como Isopor, 1997, reaparecem agora de um modo mais etéreo, com ênfase na superfície. Entretanto, Outros Continentes se mostra sob duas perspectivas diferentes:
a visão de sobrevoo própria dos mapas, cuja função é a localização num todo maior; e a visão da paisagem, ponto de vista natural e espontâneo do homem sobre o mundo. É nesta segunda perspectiva que surge o horizonte e com ele uma espécie de desorientação primordial. Mas a nova e provisória configuração de continentes proposta por Geórgia Kyriakakis o desnorteamento não poderia estar isento de uma concepção política e também irônica do mundo.
Cauê Alves