josé resende_8 esculturas
15 jun_2002 - 17 ago_2002
Patricia Correa
Sensibilidade em trânsito
Tubos de cobre e latão, superfícies de ferro, cabos de aço, chumbo derretido, água, parafina e nylon foram convocados para as novas torções, curvas e enlaces que
constituem essas esculturas. Ações e elementos que já identificam a obra de José Resende e aqui voltam a insistir na potência poética de procedimentos e materiais comuns ao cotidiano urbano. Exemplo de suas conciliações tensas entre o familiar e o inusitado, a grande estrutura que nos interpela logo na entrada confere desenvoltura sinuosa, o giro de um bailado, a um conjunto de peças industriais. Em seguida notamos que a sensação de movimento, na sugestão de deslocamentos e oscilações, se prolonga nos outros trabalhos; que a aproximação entre as três calotas metálicas, à primeira vista anunciada na junção dos tubos ascendentes, a seguir se efetiva em várias superposições e fusões. Soldada em grupos de cinco, a calota propaga sua mobilidade como módulo formal de todas as articulações que a partir daí se apresentam: estruturas que testam seu ponto de equilíbrio pendendo do teto, contrapondo massas, relocando centros de gravidade. São trabalhos que repercutem entre si, na repetição de um mesmo elemento e na diferenciação estética das suas diversas aparições – nem aura da unidade, nem lógica da série.
A indagação das relações entre o singular e o reprodutível, o autêntico e o anônimo, marcou boa parte da produção e da reflexão sobre a arte na modernidade. Estariam, afinal, no próprio cerne dessa arte a pergunta pelas possibilidades da autoria, sob a ordem imperativa da reprodução técnica, e a pergunta pelo sentido da experiência, em meio à crise geral da centralidade do sujeito. A persistência da obra de arte como fenômeno plástico irrepetível foi posta em dúvida desde o século XIX, mas seu desdobramento negativo, “anti-retiniano”, veio a dar-se no século seguinte e a ecoar, com tremenda força, nos anos 60 e 70. Essa foi uma época de consciência e acirramento das contingências perceptivas da obra: o desenvolvimento da escultura em um “campo ampliado”, o recurso a presenças instáveis ou efêmeras, totalidades dispersas e às vezes visualmente inapreensíveis, a disposição circunstancial de objetos fabricados em massa, a proeminência do conceito como estratégia. Mas a arte é sempre evocação do humano e se essa época pôde fazer supor uma “recusa do artista em ser artista”, como disse Argan, é certo que tais questionamentos radicais refletiam a própria inquietude acerca da dimensão estética da vida, a ansiedade pelo reprocessamento, inevitavelmente crítico, dessa mesma dimensão, numa ordem cultural que tendia a resumir-se a espetáculo e negócio.
Claro que a geração de artistas brasileiros formada sob o signo dessas décadas conturbadas enfrentaria seus dilemas. A escultura de José Resende, iniciada ao final dos anos 60, desde cedo assumiu a necessidade de confronto com as formas e técnicas correntes na produção da cultura material, tornando já, por princípio, a rearticulação de alguns de seus aspectos dominantes. O anonimato dos produtos industriais e as incongruências de seu uso social, a precariedade que perpassa a construção do espaço público, a tensão ou fluidez que caracterizam muitas relações no dia-a-dia: tudo isso serviria à reinvenção dos domínios do estético na experiência contemporânea. Quando nada mais pareceria escapar à dissolução e ao banal, não seria a arte capaz de reativar a intensidade da presença, não para restaurar a obra da incontornável perda de uma unidade originária, mas sim para permitir que ela siga adiante como possibilidade de renovação do sentido humano do mundo?
Imaginação e boa dose de humor, qualidades típicas do escultor, lidam aqui com esse desafio. Cada um dos trabalhos ora reunidos se distingue dos demais e ao mesmo tempo os reflete na forma determinante da calota, quase sempre repetida cinco vezes sob o mesmo arranjo. A percepção do conjunto implica, assim, notar o que os faz semelhantes e diferentes, reconhecer o que têm em comum e descobrir o que têm de específico. Além disso, já que a calota não esconde sua fatura anônima, essencialmente reprodutível, insinua também sua face corriqueira e mundana de elemento que poderia estar num pátio fabril, compondo equipamentos ou incorporado a funções mecânicas. Logo, é uma espécie de sensibilidade em trânsito na estrutura de cada obra, em diversos materiais, no espaço expositivo que a abriga, no espaço do mundo. As esculturas surgem em deslocamentos sucessivos, participam de um fenômeno difuso e variável, gerador de ressonâncias invisíveis, porém solicitam do espectador sua apreensão visual como individualidades. E é esse trânsito que, ao invés de debilitar a integridade de cada escultura, apenas a fortalece.
Daí a nitidez das ações, a inteligibilidade dos gestos que as produziram – não querem nos iludir quanto à confecção prosaica de suas articulações, mas nos querem ativos na vivência de seus nexos poéticos. Não pretendem conformar identidades absolutas; por isso, diante das pequenas poças de chumbo fundido depositadas em algumas superfícies, Resende se preocupou em comentar: “o chumbo não tem poder de solda sobre outros metais”, portanto deve ser costurado por cabos ou permanece solto, simplesmente apoiado. A escultura vista ao final do percurso também apresenta, a seu modo, identidade ambígua. Novamente é o mesmo agrupamento de calotas, só que desprovido da densidade material do aço, devido a um acabamento em verniz que o tornou uma camada lisa e leve, película cinza arqueada no ar. Vive o paradoxo de sugerir-se como frágil imagem resultante da complexa experiência que a antecede, daí a beleza quase constrangedora de sua presença, instalada entre a base estável da estrutura física e a instabilidade de uma suspensão volátil. A escultura assume os riscos da existência num mundo onde tudo parece virtualizar-se em imagens e reduzir-se a códigos, para afirmar que, no entanto, o mundo nunca perde a sua espessura.