paulo monteiro_
12 mar_1987 - 03 apr_1987
Elas se parecem com algo: um homem, um réptil, outra é difícil dizer. Todas, de qualquer modo, insinuam uma figura. O efeito é irônico, inusitado. Elas se parercem com algo, mas como que a contragosto. Há toda uma operação construtiva, simples e sutil, que leva em conta a planura do chão e o delicado arranjo das partes para libertá-los do solo, mas então se transformam. Não são mais relações entre linhas, planos e volumes. Uma fusionomia vem aglutinar o processo construtivo. E é por isto que são inusitadas. Elas não partiram de um fisionomia, esta se agregou a elas, e se mostrou possível apenas no final do processo.
Poderiam então não se parecer com nada? Poderiam. Durante o trabalho surge um monte
desses seres abortados, que podiam ter vindo à luz do dia, que bem ou mal se equilibravam, que também eram compostos de canos, engates e coisas similares e que, entretanto, funcionavam mal. O problema aqui, é o inverso do artista figurativo. Este tem um motivo determinado. Seu problema é como pintá-lo ou esculpi-lo. Já o “como” em Paulo Monteiro, é quase um problema resolvido. Mashá dias em que esses seres desajeitadamente bem-humorados (o puxa para baixo) há dias em que esses seres não querem brotar do chão. Em outros, porém todo o peso que os desequlibraria é reciclado para o interior da peça. Os membros se enervam, se atritam, e abrem no espaço, ao erguerem-se, o terrítorio de um corpo. A estratégia de conectar secções simétricas, revirá-las e alçá-las desde o chão – ainda que um mínimo- obtém sucesso. Surge, p.ex., um ombro, e tão pesado que fica na iminência de desabar. Mas é esse mesmo volume que articula o corpo para a entrada de um pé que tem tudo para não ser um pé, que tem tudo para deslizar, mas que adere firmemnete á peça e lhe dá sustentação e postura.
Estamos longe, assim, não apenas da experiência do artista figurativo, mas de outras aparentadas. Não se trata de colocar dois olhos num rabisco, num contorno qualquer, ou de encontrar imagens nas nuvens, do céu ou da psicologia. Não há projeção de imagens sobre um suporte aqui, pois o suporte também está sendo projetado. Não se trata de colocar dois olhos num rabisco, num contorno qualquer, ou de encontrar imagens nas nuvens, do céu ou da psicologia. Não se trata, também, de ter, se não como motivo, pelo menos como motivação, a prática do desenho infantil ou da arte de outras culturas. Se esses pesos e contrapesos, se essa linhas, planos e volumes adquirem fisionomias é porque são conquistados no último instante.
Não lutem para nascer desde o início. Apenas irrompem nos intestícios, como que vivos, da mecânica. A matéria e a geometria as puxam para um terrítorio mineral, ferroso e sem rosto, mas neste empurra-empurra abrem brechas para uma expressão. Uma alma, mesmo que canhestramente, então toma conta desses seres de geometria. Rondava já o processo criador e acaba por encontrar ali, por fim, o seu “habitat”. O que implica, é verdade, um horizonte fisionômico durante todo o processo, mas esse processo, essa armadilha gestual à captura de aspectos, não pressupõe nenhuma fisionomia determinada. É apenas o nicho para um semblante repentino. O que faz com que as obras tragam a marca do concebido, pois elas surgem como um acoplamento súbito de uma informação, de um esquema do vivo, com uma organicidade que já conspirava um destino, uma identidade, ainda que vaga.
Mas de onde surge esse esquema, se ele não vem, de um motivo, nem de uma projeção do sujeito sobre uma matéria informe, nem mesmo de um resgate pela arte de padrões do desenho infantil ou de culturas distantes? A questão é que os trabalhos de Paulo Monteiro são, como boa parte da arte atual, híbridos. É o choque de dois procedimentos que produz a obra: operações construtivas e abstiatas por um lado, e um horizonte fisionômico tácito,
que se insinua já na escolha dos elementos e das operações, por outro. Neste sentido é correto dizer o esquema vem de fora e projeta-se ainda que não sobre um suporte, mas sobre o próprio fazer. Mas também é verdade que isto só se dá na hora final, que toda a tática do fazer se baseia em operações construtivas e genéticas, onde as secções que depois vão sugerir um membro, um tórax, ou coisa parecida, ainda são apenas linhas, planos e volumes que buscam, uns mais outros menos, uma verticalidade.
Se fossem puramente construtivas e abstratas, essas obras deixariam de ser irônicas, de combinar como perfeitamente ajustadas coisas que, afinal, compartilham raízes diferentes. Do mesmo modo, apenas irônicas, se esgotariam na primeira surpresa do desconcerto. É assim essa mistura, a um tempo falsa e verdadeira, sutil e grostesca, que faz a graça, meio desengonçada, desses trabalhos, e que carrega consigo, vista do outro lado, uma gravidade, um pesar mesmo, quew imanta o solo ao seu redor, e quer como que desmontar esse arremedos de corpos. O humor, neste caso, está também a serviço do drama.
Alberto Tassinari