cassio michelany_
12 mai_1990 - 16 jun_1990
ESPAÇO, COR, BRILHO, MATÉRIA E MUITO MAIS
A exposição de Cassio Michalany recusa o táctil. Vem com a energia da pintura-problema, instigante e provocante. Como a Matemática moderna, não traz soluções. Investiga algumas questões, impulsionando, com a radicalidade a palo seco de seu trabalho, a pensar alguns problemas essenciais. Em especial, três deles me fascinam: a representação, a construção pela cor e a prática material do limite. Explorar as três dimensões deste “realismo concreto” (Torres Garcia, 1933) é a proposta deste texto
O quadro é um espaço objetivo
A primeira investigação é a própria problemática essencial da pintura: a da representação, isto é, “de como a beleza encontra sua forma” (Wolfflin). Em primeiro lugar, Cassio Michalany recusa a representação de significados subjetivos, Recusa a pintura como meio expressivo. A intenção formal exclui a intenção expressiva. Opta pela objetividade, expressão material da pintura. O significado do quadro é ele mesmo, e, bem mais, a própria pintura. A tela não é unidade representativa do real, é a unidade real em si. Esta recusa de um espaço subjetivo transforma o quadro em espaço objetivo. Por um jogo de reais e virtuais, atinge um nível máximo de realidade ao representar a própria realidade da forma pictórica: em si e por-ela-mesmo. Transforma-a de abstrata em concreta, intervindo pela dialética dos elementos inerente à prática da pintura. Operando com um repertório de alta economia e de síntese extrema. Cassio Michalany desenvolve sua representação pela materialidade, agenciando um vocabulário de dois códigos: o formato de superfície e cor/brilho/matéria. Sem abstração alguma, o quadro surge como um espaço objetivo de concretude total e totalizante. Produz o efeito da pintura: superfície cromática.
O processo inicia-se na própria configuração da superfície: o formato da tela. Limitando-se, propositalmente, disciplina de estruturas. Cassio Michelany trabalha com três pares de telas. São três formatos, distintos da ortogonalidade do retângulo/quadrado das telas tradicionais ou da facilidade das figuras geométricas básicas. Esta limitação reduz o universo de formatos, infinito em potencial, a um universo finito, fechado em si mesmo, ao conjunto dos trabalhos expostos. Nesta escolha original, já confirma a recusa da subjetividade, As telas nascem determinadas, sem escolha possível, sem acaso, absoluta previsão de estruturas. São únicas e não poderiam ser outras. Aí, pela exclusão da temporalidade – as telas não tem passado ou futuro -, mais uma vez, exclui qualquer tonalidade afetiva ou pulsional. Investiga somente as tonalidades estéticas. Em todos os formatos, in extremis, negando o conforto do ângulo reto, opera com o barroco da diagonal. E ela surge não como linha mas como limite das superfícies de cor, a segunda dimensão da exposição.
A concretude da cor
A pintura de Cassio Michelany propõe a concretude da cor. E mais do que isto, constrói com a cor. Reafirma-se sua vocação de explorar a essência da pintura se lembrarmos, outra vez, Wolfflin: “A pintura estabelece, antes de tudo, superfícies que ela cobre, inteiramente, por cores: é o que a distingue de todas espécies de desenho, mesmo quando ela é monocrômica”. E o faz, outra vez, no limite da radicalidade. Não inventa suas cores, Também não trabalha com qualquer cor, Até na escolha da tinta, recusa a subjetividade. Suas cores são únicas, decididas no catálogo de tintas produzidas industrialmente. E, além de tudo, sintéticas. Não pinta a cor de alguma coisa. Pinta a cor com a própria cor, No limite da simplicidade e da austeridade material, para alavancar a determinação do acaso, usa a cor tal qual a encontra na lata, produto industrial, disponível em qualquer loja de tintas, na sua plena artificialidade: todos seus valores são controlados objetivamente, até onde chega o controle de qualidade do fabricante, não o do olho do artista.
Sem sutilezas ou julgamentos intermediários. Cassio Michalany constrói a forma pela cor, pelo recobrimento, por igual, de toda a superfície. Os limites da massa de cor coincidem com os limites da tela. A superfície de cor determina o formato da tela. O fim -físico e metafísico- do quadro ‘’ o próprio quadro. O limite da cor se define pela cor. E isto acontece de duas formas, sempre no nível máximo de intensidade. Nas telas monocromáticas, uma situação de mínima complexidade aparente, a do objeto enquanto objeto. Nas telas bi-colores, a situação de máxima complexidade, a do objeto e seu vazio. O branco, soma das cores, lembrando a intuição de Mondrian, é o vazio. O preto, por ser ausência de cor, por extensão, idem. No fim, portanto, todas as telas são monocrômicas, mesmo que aparentem 2 cores. Outra vez, o jogo de reais e virtuais, especial no quadro preto, no limite do material e do concreto, sem abstrações ou jogo de ideias.
Quando aplica a cor, com trincha mesmo, pela violência de sua textura, visível à luz, melhor se rasante, Cassio Michalany transforma a superfície sem matéria do esmalte sintético. Recusa o acabamento laqueado. O gesto, impreciso por natureza, preciso por seu projeto, pela força do pulso e da mão, ao espalhar a tinta pura, precisa, nos limites da estrutura forma-cor, introduz o acaso do ato e da matéria. Outro explicitador de contradições, quem faz a pintura não é o olho, é a mão. Quem controla a mão é o olho. A marca da ação do pintar destaca o efeito do trabalho, inscreve o gesto, o trabalho. Este sentido de produção material supera a simples criação.
A prática do limite
A ruptura com a ortogonalidade, levando ao extremo geométrico, através do projetolho (mais que geometria do projeto ou informal do olho), é apenas uma das manifestações da prática dos limites de Cassio Michalany. Outra, também interessante, é sua intervenção na relação quadro/espaço ou pintura/arquitetura. Os quadros de CM, reforçados por seu diálogo próprio, entre si, independente do espaço, são anti objetos arquitetônicos. A tela não se deixa penetrar pelo espaço. Não se reduz a objeto do espaço. Por sua escala, chocante em si, autônoma, invade e penetra o espaço arquitetônico, articulando um espaço próprio: o da totalidade pictórica. A pintura não se subordina ao espaço: Coordena-se por parataxe, para configurar um espaço exclusivo, cujos limites são os da própria pintura. We que transcende à sua fisicalidade superficial/material para organizar uma estrutura espacial diferencial (Aqui, quem conhece, lembra de Fleynet)
Para concluir, passamos desta prática dos :limites estéticos aos limites da radicalidade existencial de Cassio Michalany. Sem os jogos da produção extensa, coloca-se, frontalmente, contra o fácil, contra a auto-reprodução, contra as variações sobre o mesmo tema. Em projeto suicida, prefere a prática de ruptura consigo mesmo. Não explora as soluções. Prefere os problemas essenciais. Tentando um grau máximo de dificuldade, com rigor pleno, opera nas raízes e medulas do estético, no limite da concentração. Nesta exposição, poderia apresentar mais de uma dezena de telas. Não, limita-se a seis. Elas colocam e esgotam o problema, em uma totalidade de síntese material, plena. O passo seguinte jamais será explorar suas variações. Investigará o vazio. Cassio Michalany parte para outra, recomeçando do zero para tentar um novo limite, sempre mais impossível que o anterior, sem volta. E, de impossível em impossível, rompendo sempre com si mesmo, se condena a tornar possível o impossível. Poucos aguentam este ritmo de Sísifo, decisivo.
M.A Amaral Rezende
Ilhabela/ São Paulo, 1989/1990