iole de freitas_
12 abr_ 1988 - 12 mai_1988
FLUIDOS CONCRETOS
O trabalho recente de Iole de Freitas parece fazer uma opção decidida pela escultura. Mas ainda, por uma escultura que, em última instância, derivaria da própria estatuaria. Em qualquer das situações que a obra venha a acontecer – no chão ou na parede- e com toda a sua instabilidade e precariedade, haveria sempre uma referência à sensibilidade corpórea. E, no entanto, é obviamente impossível reportar os seus materiais metálicos, algo cortantes, e suas operações fluidas e intrincadas, à tentativa de representação do corpo. Justamente para manter o tema da escultura , seríamos obrigados a redimensioná-la numa inteligência contemporânea. E de saída descartar qualquer visão anatômica ou biológica. Corpo aqui significa: a ordem das pulsões. A partir, evidentemente, da célebre distinção freudiana entre instinto e pulsão. Nesse sentido, sim, Iole de Freitas trabalha e só trabalha o corpóreo: planos, linhas, volumes (sob o aspecto de telas e fios de metal), surge graças às manobras, na acepção literal do termo, que acompanham a ação palpitante, erótica mesmo, da pele; e obedecem e desvendam impulsos suaves e delicados, porém urgentes e imprevisíveis.
O resultado apresenta uma ambiguidade essencial- Estruturas de Pele. Estruturas porque, sem dúvida, com seu zig-zag sensível, às manobras visariam afinal o estatuto de Todo Abstrato, aspiram à condição de conceitos visuais. Notoriamente da pele, contudo, não por imitar a sua textura, e sim porque a sua pulsação remete ao percurso por assim dizer informalizável dos portos. Remete a um corpo que não para de sentir, não para de pedir, e desconhece as noções tradicionais de movimento e repouso. Ao nível dos chamados processos primários, como se sabe, a dinâmica é ininterrupta e incongruente. Algo nas construções passageiras e inquietantes de Iole de Freitas como que traduziria a mobilidade permanente e indecidível das pulsões. E a transparência estranha da matéria só desvela verdades superficiais. Ao invés da clássica profundidade, exibe as evoluções e os desdobramentos topológicos das pulsões. Elas se misturam e confundem, trançam entre si, e compõem a dimensão “profunda” do homem – a própria tessitura e espessura da pele.
Inexiste o oculto ou o obscuro: o mistério está na transparência.
Volumes voláteis constituiriam os núcleos de estabilidade possíveis no fluxo incessante das pulsões. O pathos é irremediavelmente instável. Daí um certo registro do trabalho, parcialmente verdadeiro: um impressionismo da dinâmica das pulsões. O pathos é irremediavelmente instável. Daí um certo registro do trabalho, parcialmente verdadeiro: um impressionismo da dinâmica das pulsões. Já o momento de sua produção, frágil e febril, seria sintomático: jamais as obras poderiam ser projetadas a distância, planejadas a priori. Acontecem imediatamente no plano da vida, coladas ao desejo do sujeito e à sua realização sempre futura e incerta. Seria um erro, entretanto, tomá-las como ilustrações do que a psicanálise vulgarizou sob o nome de fantasmas. Não existe propósito figurativo, muito menos ilustrativo. O que há é a tematização da questão escultórica do corpo a partir da visada moderna do inconsciente- o desejo se transformaria em sujeito e objeto de uma investigação estética que, no limite, estaria empenhada exatamente em desfazer o dualismo. Depois de Moebius, a escultura só pode propor um território sem balizas ou pólos fixos, dentro/fora, interior/exterior; espaço corpóreo que não consente articulações mecânicas ou de interioridades inefáveis.
Sem querer aproximar as ópticas dos dois artistas, basicamente díspares, acho que o conceito de Escultura Social de Joseph Beuys- a arte como energia coletiva atopica e anti institucional mas repotencializadora e reguladora das ações criativas singulares- teria alguma pertinência aqui. Essas esculturas aéreas- massas de luz quase- parecem percorrer o plano social enquanto focos de energia intensa e dispersa. Ao rejeitar contemplações ou identificações estáveis, procuraram atuar na qualidade de fluidos sutis porém materiais; isto é, como seres participantes da física social, conjuntos vazados e densos, passagens de formas evanescentes mas concretas. E como obra de arte deteriam a força do paradoxo positivo- uma poética por assim dizer imaterial que sabe encontrar a matéria exata para organizá-la e expandi-la, sem aprisioná-la. Em meio ao real pesado e opaco, por isto mesmo produtor de vácuo existencial, a escultura de Iole de Freitas faria a demonstração estética inversa: uma obra leve e aberta dotada de consistência lógica.
Trabalho tênue e tentativo, incansável e atraente, que contraria, por princípio, a presença maciça de um mundo que só sabe aparecer pronto e ameaçador. – Ronaldo Brito