marco do valle_vórtice

14 ago_ 1984 - 14 set_1984

marco do valle_vórtice

PESADELOS DA RAZÃO

Os objetos de Marco do Valle dão a impressão que funcionariam, mas não se sabe bem como e onde. Negam a função familiar e original de suas partes, mas guardam trechos de um pensamento construtivo e operativo. Funcionariam. Mas onde e como? São situações similares às do pesadelo, onde os opostos se tornam intercambiáveis: o repouso em movimento, o contínuo e descontínuo, o líquido em sólido, o continente em conteúdo.

Tomados em conjunto- e é difícil considerá-los separadamente- todos estes objetos seriam como fragmentos de um mundo e de uma física da ordem do sonho, contraria a disposição e a percepção familiar dos corpos.

Mas não apenas isto, pois estes trabalhos não buscam nenhuma verdade surreal. A verdade é uma questão que aborda apenas lateralmente. Não há, na maioria deles, nada de estético, adequado às fulgurações de um mundo que surgiria em meio às aparências da vigília ou do sonho. Seus trabalhos são antes uma paródia, mais melancólica do que irônica, do mundo dos utensílios e dos instrumentos, e sobretudo do pensamento operativo da ciência- praticamente eficaz, mas teoricamente restrito a seus “dogmas”- quando debruçado sobre a matéria e seus enigmas. Pois o que faz a física, aliada à matemática, se não pensar o movimento como uma coleção de momentos, o tempo sob a ótica do instante, e o contínuo a partir do descontínuo? Mais do que a verdade oculta dos sonhos estes objetos ilustram os pesadelos próprios da razão. Sua agilidade em percorrer todo o mundo sensível, mas, como a flecha de Zenão, sem sair de seu lugar.

Há um mal-estar cosmológico nos dias de hoje. Não é mais na astronomia, mas na astrologia, que se buscam segredos do universo. E seria um triste fim para a ciência se dar conta, afinal, que quanto mais ela cobre distâncias- que quanto mais ela funciona sobre situações que para si mesma fabrica (Merleau-Ponty)- mais ela desconhece o chão onde pisa. Que se pense no conhecimento da matéria. Quanto mais a decompõe, mais os físicos se dão conta- é a opinião de Heisenberg, p.ex.- que no fim das contas apenas encontrarão o que já tinham posto desde o início: uma ideia, uma forma, enfim, uma equação.

Mas seria injusto avaliar estes trabalhos como engrossando a corrente dos misticismos de massa contemporâneos. A paródia melancólica que encenam- mistura de procedimentos rigorosos com resultados grotescos- guarda assim mesmo um sentimento de descoberta. Penso aqui sobretudo no trabalho composto de duas pequenas bacias contendo chumbo e cujo nome dá título à exposição. Aí estão postas algumas das questões da história da escultura (a apreensão do movimento, etc) mas também estão figurados certos problemas da apreensão do mundo físico pelo pensamento ( o tempo como soma de instantes, o movimento como sucessão de momentos, etc). As aporias de arte, afinal, não seriam assim tão distintas das da ciência. Revelariam duas das faces do mundo, desse único mundo, que nos incita, ininterruptamente, a desvendá-lo em seus mistérios. – Alberto Tassinari

 

imagens da exposição